Notibras

Esquece que existo, disse o pistonista. E o mundo quase vive novo dias do dilúvio

Escrevi certa vez que gosto de transformar piadas cabeludas, que aprendi na adolescência, em contos. Este texto pertence a esse gênero, digamos, piadesco-contesco.

Um esclarecimento, na piada, o personagem se chama Kalil, o que propicia uma rima cabeluda e quase herética. Mantive a quase heresia, mas mudei o nome do cara para Manuel, com a idade, estou ficando mais comedido (atenção, uma palavra só e com o). E acrescentei novos elementos não piadescos. É o jeito, escrevo contos…
…..
Manuel, 35 anos, era um péssimo tocador de piston. Participava de uma banda de jazz e da charanga que animava os bailinhos na cidade, mas o que o levava ao sétimo céu era acompanhar, com seu piston, as procissões locais. Era cristão fervoroso, embora seu comportamento não fosse dos mais católicos: traçava, naturalmente em segredo, a mulher de um colega de banda, pegava, em segredo maior ainda, a filha de 20 anos do casal (filha de criação, mas duvidava que, se o corno e a amante descobrissem, se ativessem a tais detalhes). Enfim, reconhecia que, com sua vida, iria direto pro inferno, mas tinha esperança de que sua fé e a presença em todas as manifestações religiosas o pudessem salvar.

Certa noite, uma procissão serpenteava pelas ruas, e ele impávido, com seu piston. Sentia uma religiosidade maior que a habitual crescer em seu peito e se ofereceu de corpo e alma a Jesus, murmurando, “Mestre, quero segui-Lo”. De repente, deixou o nível dos céus, voltou à terra e tremeu nas bases. Sabia que, no final do evento, seria entoada uma canção em louvor à Virgem em que ele sempre derrapava. Mas preparou-se e foi em frente, não tinha outro jeito.

A tigrada comprimiu-se na praça principal, onde uma intérprete apresentaria a composição “Ave Maria dos seus andores”, sucesso na voz de Aguinaldo Rayol. A mulher não lhe chegava aos pés, mas, Manuel sabia, pelo menos não desafinava. Já ele e seu piston…

Foi entoada a primeira metade do primeiro verso, “Ave Maria”. Manuel sapecou logo em seguida, “La la li la lá”.

– Obrigado, meu bom Jesus, não desafinei – murmurou, enquanto se preparava para a continuação.

“Dos seus andores…”

“La la li la dã…”

E o piston de Manuel, como sempre fazia, derrapou nas notas finais.

Nesse momento, ele viu a imagem de Jesus libertar-se das madeiras a que suas mãos e pés estavam presos e manifestar-se em toda a Sua glória. Foi um ser de aspecto heroico que lhe dirigiu as seguintes palavras:

– Se quiseres siga-Me, Manuel. Mas vai tocar piston mal assim na casa do chapéu!

(Esse era o fim da piada, com uma rima das cascudas para Kalil, nada difícil de imaginar. Ao chamar o pistonista de Manuel, a coisa ficou mais amena E a conclusão é exclusivamente deste escriba.)

Manuel ficou possesso. Sabia que não tocava bem, mas foi sacanagem de JC zoar com ele, em plena procissão. E quase falando palavrão? Era um bom improvisador, como todo jazzista, deu o troco de bate-pronto.

– Cristo, olha pra isto! Olha, JC, esquece que eu existo!

Jesus tinha outros planos. De um momento para outro, Manuel deixou de existir; simultaneamente, desapareceram todas as memórias e registros de sua passagem pela Terra. Sumiram o RG, o certificado de reservista, boletos em seu nome, tudo que o designasse; e foi varrido da mente dos que o conheciam: seus pais, amigos, desafetos e meros conhecidos, os colegas da charanga e da banda de jazz, o corno, a amante e a dadivosa filha do casal. (Por um tempo, mãe e filha ficaram com uma inexplicável sensação de vazio interior, logo preenchido pelos préstimos de solícitos cavalheiros.)

Animado, Jesus até pensou em aproveitar o embalo e acabar com toda a espécie humana, como seu Pai havia feito nos dias de Noé, mas desistiu, afinal a coisa não era tão grave assim. Deu de ombros e voltou à cruz a que estava preso.

Quando acabou a canção, a tigrada na praça se dispersou, toda pimpona, sem saber que a humanidade escapara por pouco de uma segunda extinção, mais definitiva que o Dilúvio. Tudo culpa de um mau pistonista que não aceitava críticas…

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