Notibras

Flora, a menina sardenta

Lucinda, mal pisou no chão frio de vermelhão, se arrependeu de ter colocado o despertador para tão cedo. A franja caída protegia os olhos da luminosidade, que atravessava sem piedade a janela de vidro do seu quarto. Olhou de relance e, assustada, percebeu um vulto andando apressado pelo jardim. Tentou, mas não conseguiu vislumbrar o rosto.

Intrigada, calçou o chinelo de tricô e correu, mas não encontrou viva alma no local. Apenas o amplo gramado, onde se destacavam uma mangueira e um enorme abacateiro, além das roseiras e hortênsias. Voltou os olhos para o alpendre, onde costumava ficar Mel, a cadela de cor trigueira, morta há não mais de um ano. Talvez impressionada, imaginou ter ouvido o último uivo de lamúria da cachorra, que havia sido picada por uma cascavel.

Tornou a olhar para o amplo gramado. Balançou a cabeça de um lado para o outro, até que desistiu e entrou. Foi direto para a cozinha, onde já se encontrava Flora, tão ruiva e sardenta como uma criança de seis anos pode ser. A menina se virou e abriu um amplo sorriso ao ver a mãe. As duas se abraçaram. Em seguida, Lucinda preparou o café da manhã.

Flora parecia adorar cada tipo de biscoito que a mãe lhe preparava. A geleia era tão generosamente espalhada pelo pão quentinho, que escorria sem cerimônia pelos cantos. As faces rosadas da pirralha ficavam lambuzadas de felicidade.

Da cozinha, passavam para a sala, onde Flora tentava aprender cada ponto de crochê. De tão esperta que era, logo começou a fazer amplas colchas, que atraíam fregueses vindos de bem longe até o sítio, que ficava grudado ao pé da serra. Horas e mais horas, até que a luz do dia se findava por completo, obrigando Lucinda a acender as lamparinas. Não tardava, as duas adormeciam abraçadas.

Na manhã seguinte, a rotina prosseguia. Lucinda, o jardim, Flora, o café da manhã, as colchas, lembranças cada vez mais distantes da cadela Mel. A ciranda rodava como na última volta, repleta de uma nota só. Até que, certa manhã, quando as duas ainda estavam fazendo o dejejum na cozinha, foram despertadas daquele transe de felicidade por um incessante bater de palmas vindo da porteira.

Lucinda foi até o alpendre, de onde pode avistar um jovem casal, que parecia perdido. Pelo menos ela nunca havia visto aqueles dois, que logo se apresentaram. Eram da cidade e estavam fazendo trilha pela região. Pediram um pouco de água, Lucinda os convidou para entrar.

Já na cozinha, foram servidos pela anfitriã, que os apresentou à filha. O casal olhou para a cadeira, onde Flora costumava se sentar. A menina lhes sorriu. Os jovens beberam mais que depressa a água, agradeceram pela hospitalidade e se afastaram até quase a porteira. Ao se virarem para se despedir pela última vez, avistaram um pequeno monte, de onde aparecia uma lápide. Nela estava escrito: “Saudade eterna da minha amada Flora”.

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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

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