Notibras

Fotos que não cabem mais no álbum

Abri a caixa de sapato que vive no alto do armário e caiu um pedaço do século passado na minha cabeça. Literalmente: uma foto 10×15 bateu na minha testa como quem diria que o tempo pesa tanto?

A primeira que peguei era de 1972. Eu com seis anos, dente faltando, cabelo tigela, segurando um picolé que escorria mais rápido que minha felicidade. Ao fundo, minha avó rindo com a boca cheia de milho assado. Eu nem lembrava que ela usava óculos de armação vermelha. Olhei tanto tempo praquela foto que quase senti o gosto do groselha derretendo no meu queixo.

Tem outra: Natal de 2001. A árvore de Natal era tão pequena que parecia de brinquedo, mas a gente tinha de sobra. Meu tio Zeca de camisa xadrez horrorosa, minha prima com aparelho roxo brilhante, meu pai com cabelo (sim, ele já teve). Todo mundo com cara de quem comeu rabanada até quase explodir. No canto da foto, escrito com canetinha: “Feliz 2002 – que venha o Lula”. Veio. A foto ficou.

Aí vem as fotos de escola. Meu Deus, as fotos de escola. Eu com uniforme duas vezes maior, cabelo de rabo, cara de quem foi obrigado a sorrir sob pena de morte. Ao lado, o amigo Léo, que jurava que ia ser jogador do Corinthians e hoje vende seguro de carro em Campinas. Sorriso de quem ainda acreditava em tudo.

E as fotos de Orkut, meu pai do céu. Impressas! Porque em 2008 a gente tinha medo que o Orkut acabasse e imprimia tudo. Eu com franja, delineador borrado, fazendo biquinho na frente do espelho do banheiro. A legenda escrita atrás: “sou um ser estranho e talz”. Eu era. Continuo sendo, só que agora sem franja.

De repente um verso escapuliu e caiu no chão: minha mãe com 29 anos, magrinha, cabelo cacheado solto, segurando eu bebê no colo. Ela olha pra câmera com um sorriso tão leve que dói. Eu nunca tinha reparado que ela era tão jovem. Tão bonita. Tão possível de errar, de sonhar, de cansar. Naquele instante ela era só uma menina com um bebê no colo e o futuro inteiro pela frente. Agora sou eu que carrego ela nas lembranças.

Senti o verso chegar baixinho, quase pedido:

A foto não guarda luz

guarda cheiro de bolo queimado

guarda grito de “sorri!”

guarda domingo com sol demais

guarda a voz que já se foi

mas ainda fala dentro do peito

quando a gente menos espera.

Guardei todas de volta na caixa, mas deixei três em cima da mesa:

a do picolé com a avó

a do Natal com cabelo no meu pai

a da minha mãe me segurando como quem segura o mundo.

As outras podem esperar. Essas três precisam respirar um pouco. Precisam me lembrar que o tempo não levou tudo: levou o picolé, levou o cabelo, levou a voz, mas deixou o essencial: a prova de que um dia a gente foi inteiro dentro de um pedaço 10×15.

E enquanto eu tiver essa caixa,

o passado não morre.

Só fica quietinho,

esperando eu abrir de novo

pra me dar um abraço de papel e saudade de tudo que se foi.

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