Notibras

GENTILEZA NÃO NASCE EM ÁRVORE

Sou idosa, com problemas sérios de coluna, que me atrapalham demais a mobilidade. Ando sustentando em uma bengala, que passou a ser a minha terceira perna. Por causa disso, evito fazer muitas coisas, ir a muitos lugares porque as dores, que me acompanham 24 horas, se intensificam.

Lugares que evito são atacadões, pois são muito amplos, e a gente acaba fazendo uma maratona lá dentro. Mas, por outro lado, gosto, porque a gente encontra tudo e com variedades de marcas, onde podemos escolher à vontade.

Hoje, levantei-me disposta a ir a um deles aqui na minha cidade. Fui, comprei, rodei, rodei, arrastando a perna porque tem uns três dias em que as dores fazem reunião, em cima de reunião. Então, acho que estão fazendo um festival para ver que osso dói e incomoda mais. Não estão saindo de mim.

Há dias que ficam só algumas para marcar presença, me alertarem que elas estão ali, à disposição, mas, nesses dias, está a cúpula todinha reunida.

Bom, depois que andei uns dez quilômetros, resolvi ir para o caixa, enfrentar mais quase uma hora em pé e me lembrei que procurei o fermento e não encontrei. Estava passando uma funcionária perto de mim, mas vi que ela estava meio apressada e eu:

— Bom dia, moça. Onde fica o fermento?

A moça não parou, não respondeu meu bom-dia e, quase correndo, disse:

— Eu não sei, quem sabe é aquele ali — gesticulou, mostrando um outro funcionário.

Nem precisei sair do lugar porque o “Quem sabe é aquele ali” deve ser o nome dele, estava quase pisando em mim. E, antes que eu falasse alguma coisa, ele gesticulou lá pro outro lado da loja e disse mostrando com o braço.

— É pra lá, bem pra lá.

E já saiu apressado para o lado oposto.

Pensei comigo: mas que povo apressado! Coitados, eu não sei, às vezes, estão com o pai na forca ou está acontecendo um incêndio. Deixa pra lá.

Fui manquitolando atrás do tal fermento. Pelo que “Quem sabe é aquele ali” me mostrou, me pareceu ser na última seção. Já estava passando rente aos caixas e já resolvi deixar o carrinho na fila. Parei atrás de uma conhecida, cumprimentei-a, sorri:

— Tudo bem, Márcia? Vou deixar meu carrinho estacionado aqui atrás do seu e vou atrás de um fermento.

—Oi, Lúcia, há quanto tempo! Tudo bem? Pode deixar seu carrinho aí, não deixo ninguém tirá-lo, enquanto você não voltar.

— Pois é, Márcia, o tempo voa, a gente aposenta, some. Muito obrigada, por guardar a vaga pra mim. — e fui o mais rápido que pude. Como diz minha neta: depois de mil anos… a vovó chegou.

Fui à última seção, procurei, procurei. Mas, quando a gente quer, o produto pode estar na cara da gente, que a gente não acha. Tive de perguntar de novo. Dessa vez, tinha uma funcionária arrumando os preços na última prateleira da gôndola.

— Oi, moça, bom dia! Desculpe-me por atrapalhar seu serviço, mas você sabe me dizer onde posso encontrar fermento?

Mesmo agachada, ela olhou, levantou e disse:

— Bom dia, senhora. Levo a senhora lá. Me acompanhe, por favor.

Pensei: coitada, além de atrapalhar o serviço dela, ela ainda vai perder um tempão esperando-me acompanhá-la. Ela andando, eu me esforçando para andar o mais rápido possível. De vez em quando, ela olhava pra trás, pra ver se eu a estava seguindo.

Andamos mais duas seções pra chegar. Ela falou:

— É aqui. — me mostrando, apontando com a mão.

Agradeci e perguntei-lhe o nome: Raissa.

— Muito obrigada, mesmo, Raissa. Uma funcionária me disse que não sabia, mas que “Quem sabe é aquele ali”. O “Quem sabe é aquele ali” me disse que era bem pra lá. Muito vaga a informação dele, você não acha?

— É, infelizmente, têm pessoas que, mesmo depois de passarem por treinamentos, não aprendem.

— Muito obrigada, Raissa, você é muito gentil. Continue assim, você só se vai dar bem na vida.

Ela agradeceu e voltou para o trabalho dela.

Peguei meu fermento, tão minúsculo, e voltei para o caixa onde estava estacionado meu carrinho.

Têm alguns substantivos abstratos, mas na falta deles, eles ficam bem concretos. E há pessoas, aliás, muitas pessoas que trabalham com raiva, sem nenhuma simpatia.

Sei que trabalhar não é bom, mas não podemos ficar sem trabalhar. Precisamos do dinheiro. Já que somos obrigados a trabalhar, temos de fazer com que o nosso ambiente de trabalho fique mais leve, ainda mais quando lidamos com o público.

Ah! Mas fiz questão de mandar um e-mail para a rede, contando a história e elogiando a gentileza da Raissa.

Sair da versão mobile