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Getúlio, Getúlio Filho, Getulho Neto e o homem da fratura tripla

Getúlio, ou melhor, Dr. Getúlio Neto, é filho do lendário Dr. Getúlio Filho e, obviamente, neto de um outro Getúlio, mas que, apesar de não ser doutor, ganhara fortuna na exploração de minério. Por conta disso, mandou o filho ir estudar em Brasília, quando a cidade ainda engatinhava nos conturbados anos 1960.

Getúlio Filho graduou-se com louvor na UnB e, ao longo das décadas, recebeu diversas homenagens por causa de sua incomum destreza como ortopedista. Ironicamente, acabou seus dias sobre uma maca antes de ser atendido pelo cardiologista de plantão. Infarto fulminante. Fulminante, sem dó nem piedade. Recebeu uma lustrosa placa no Hospital de Base, onde havia trabalhado durante anos.

Getúlio Neto, que chegou a atuar ao lado do pai em algumas cirurgias, parece que pegou o jeito. Tanto é que, até onde se tem notícias, conseguiu remendar mais ossos do que a maioria dos colegas. Dizem até que é melhor do que o falecido, mas não há quem afirme isso em público, mesmo porque correria risco de ser achincalhado. Realmente, não se pode superar lendas, sejam elas de qualquer profissão.

Pois lá estava o Dr. Getúlio Neto em mais um plantão, que até parecia calmo. Como era feriado prolongado em Brasília, e a população procura refúgio em outras paragens, o médico imaginou que poderia tirar uma soneca, e foi o que fez até que Leonor, a enfermeira, bateu à porta do alojamento.

— Doutor! Doutor!

Sonolento, o sujeito abriu a porta.

— O que foi, Leonor?

— Chegou um homem com fratura tripla no braço.

— Acidente de carro ou moto?

— Caiu da escada.

Após a cirurgia, Getúlio Filho retornou ao alojamento e, dessa vez, conseguiu dormir até o final do plantão. Arrumou suas coisas, se despediu dos colegas e, não tardou, entrou no amplo apartamento no final da Asa Sul.

Decidido a passar o dia entretido com algum filme clássico, lembrou-se de um livro que havia ganhado de um amigo. Ele sabia que era algo relacionado a películas, mas não se lembrava do nome. Procurou na estante da sala e logo encontrou a obra: No escurinho do cinema – memórias de uma cinéfila, de Brígida De Poli.

Após se deliciar com as crônicas da escritora, o gajo resolveu pedir algo para forrar o estômago. Nada muito pesado, pois já passava das 20h e, sabia, precisaria trabalhar no dia seguinte.

Getúlio despertou animado como há muito não o fazia. Ele sabia que a literatura era melhor do que uma dose de dopamina e, então, fez a promessa de repetir o feito assim que retornasse ao lar, doce lar.

O profissional chegou ao hospital, foi até o quarto do homem da fratura tripla no braço esquerdo. José Carlos. Era o nome do paciente.

— Bom dia, seu José Carlos! Como o senhor está se sentindo?

— Oi, Doutor! Bom dia. Estou bem. Com um pouco de dor apenas.

— Hum. Vou pedir para aumentar a dose do analgésico.

Enquanto o médico examinava o enfermo, eis que uma mulher entrou. Era Lúcia, esposa do José Carlos. Ela agradeceu ao doutor por ter endireitado o braço do marido.

— Fiz o que pude, dona Lúcia.

— Então, o senhor pode muito.

— Obrigado.

— Doutor, será que vou conseguir tocar violão?

— Sim. Claro que vai.

— Ah, então, o senhor é bom mesmo!

José Carlos e Lúcia se entreolharam e caíram na gargalhada. Getúlio sorriu, mas sem entender, até o momento em que a mulher esclareceu.

— Doutor, é que o meu Zé Carlos nunca conseguiu aprender a tocar violão.

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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

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