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HISTÓRIA DE UMA PARDALOCA

Eu sou um pardal. Aliás, um pardal não, vírgula, uma pardaloca.

Embora as pessoas só chamem pardal, se esquecem de que temos nós pardalocas, pardoca, pardalejas, como queiram, mas eu sou uma fêmea e amo ter nascido fêmea.

Já estou entrando na adolescência e já estou olhando para os machos, com outros olhos, quero muito arrumar um macho bonito, forte, provedor, para que possamos ter muitos filhinhos e, assim, não deixar desaparecer nossa espécie.

Até estes dias, mamãe me acompanhava me mostrando os perigos do mundo, a maldade de outros animais e principalmente do humano, que acha que nós somos praga.

Agora, mamãe me deu a carta de liberdade.

Mas, antes de me amarrar em algum pardal, quero explorar o mundo, voar para onde minhas asas me levarem, conhecer vários lugares, outros passarinhos, apesar de nossa convivência não ser tão amigável assim, afinal, temos de disputar até uma simples lagartinha desprevenida.

Pois bem, escolhi para morar um condomínio de árvores, que, apesar ser bem no centro da cidade, ainda está preservado com muitas árvores, comida e água farta. Os donos dessa propriedade são humanos que respeitam muito a natureza e até nós, pardais, eles gostam e admiram.

Tem um cachorro que mora aqui também, que não é muito, digamos, amigável, pois ele fica querendo nos pegar, quando resolvemos brincar no telhado da área de serviço, e ele fica na área, correndo de um lado para o outro, pulando, querendo nos pegar através das telhas.

Lá em cima do telhado, ficamos super tranquilos, pois o cachorro não nos alcança. Embaixo, não damos muita sopa, pois, se voarmos baixo, ele pode nos alcançar, como já alcançou alguns dos nossos amigos. O bicho é igual a um canguru para pular, e tem horas em que ele deve pensar que tem asas, pois tenta voar. Ele pula muito, tanto em altura, como em distância.

Eu fico observando a cozinha da casa e sempre tive vontade de entrar para explorar. Meus amigos, irmãos e outros parentes, sempre me falam que não devemos ficar entrando nas casas, porque os donos podem não gostar e nos matar. Mas essa cozinha me fascina, é um lugar amplo e sempre tive muita vontade de entrar.

Ontem, não sei se foi por esquecimento ou por querer, a senhora deixou duas janelas meio abertas, e eu vi a possibilidade. Quase não dormi, imaginando a aventura, só que não contei para ninguém porque sei que todos são contra. Eles dizem que sou muito curiosa, e que a curiosidade matou o gato. Eu não estou nem aí, se matou o gato é porque ele não foi esperto e previdente.

Amanheceu. Esperei os outros voarem para longe e fui em busca da minha maior aventura até agora, entrar na cozinha da casa de humanos.

Entrei. Nossa! Que lugar bom para ficar, amplo, poderia voar à vontade, mas não achei nada para comer, nada mesmo, nem um grãozinho de arroz caído no fogão.

Fiquei super à vontade, explorei bastante e eis que ouvi os passos da senhora. Pensei, vou fugir, antes que ela desça as escadas.

Mas não prestei atenção, são muitas janelas, todas de vidro e, por conta do reflexo, não conseguia enxergar as duas que estavam com um espaço aberto. Tentei manter a calma, como mamãe me ensinou: em perigo, mantenha a calma. Apavorar é pior.

Pousei em cima da geladeira, fiquei imóvel, como se fosse um enfeite, tentando ver quais janelas estavam abertas e, ao mesmo tempo, ouvindo os passos lentos e compassados da senhora descendo as escadas, com muito cuidado e calma, pois a referida senhora tem problemas de mobilidade e é bem lenta.

Quando a senhora adentrou à cozinha, não adiantou meu disfarce, ela me viu de longe.

— Oh! Temos visita logo cedo.

Meu coraçãozinho estava quase escapando pelo bico. Mesmo sabendo que aquela senhora gostava dos animais, pois mamãe me mostrou um ninho na área de serviço, que ela e papai queriam fazer de maternidade, mas mamãe não quis e depois um casal de rolinhas se apossou dele, a rolinha botou os ovinhos e chocaram na maior paz. Mesmo assim, não teve jeito de não ter medo.

Ser humano é muito grande e muitos são maus. Uns não, mas muitos são.

— Você veio nos visitar, pardalzinho? Que bom, seja bem-vindo!

Respondi:

— Sim, vim visitar, mas já estou de saída, basta encontrá-la.

— Não tenha medo, pequeno, olha lá, a abertura na janela. Não tenha medo, pequeno, não vou fazer nenhum mal a você.

Com as palavras carinhosas da senhora, consegui enxergar o vão da janela na direção que ela me mostrou. Mesmo com as palavras carinhosas, não me demorei, dei um voo certeiro na direção da janela meio aberta.

Logo perto da janela tem uma aceroleira, onde pousei, dei uma bicada em uma fruta para me recompor e gritei a plenos pulmões.

— Obrigada, senhora, pela delicadeza, mas não sou um pardal, sou pardaloca, não sou pequeno, sou pequena.

Será que ela ouviu?

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