Na Índia, a vaca não é apenas um animal. É um arquétipo de pureza, um elo entre o humano e o divino, e um símbolo vivo de ahimsa — o princípio da não violência. Ao caminhar livremente pelas ruas caóticas de Délhi ou Varanasi, entre templos, mercados e buzinas, a vaca parece flutuar acima das hierarquias humanas, venerada com a paciência que o tempo consagrou em milênios de espiritualidade.
A sacralidade da vaca remonta aos Vedas, textos sagrados compostos entre 1500 e 500 a.C., que formam o alicerce do hinduísmo. Neles, a vaca era vista como um presente dos deuses, símbolo de fertilidade, abundância e prosperidade. O leite, a manteiga clarificada (ghee) e o esterco, usados em rituais e na vida cotidiana, reforçavam a ideia de que a vaca oferecia tudo sem pedir nada — uma metáfora perfeita da generosidade divina.
No Rig Veda, a vaca é chamada de Aghnya, “a que não deve ser morta”. Essa noção se consolidou nos séculos seguintes, quando o sacrifício animal, comum nas práticas védicas antigas, foi sendo substituído por rituais simbólicos de oferenda. A vaca passou, então, de instrumento ritual a símbolo moral.
Na mitologia hindu, a imagem de Krishna — o deus azul e jovial — tocando sua flauta entre rebanhos de vacas é uma das mais amadas e reproduzidas. Krishna é o “Gopala”, o protetor das vacas, e sua juventude entre pastores simboliza a harmonia entre o homem e a natureza.
Cuidar da vaca tornou-se, assim, um ato de devoção. A vaca passou a ser vista como a mãe universal — “Gau Mata”, a Mãe Vaca — fonte de alimento, pureza e sustento espiritual.
Com o advento do jainismo e do budismo, a ideia de ahimsa (não violência) ganhou força. No hinduísmo, ela se entrelaçou à veneração da vaca: respeitar o animal era respeitar a vida.
Séculos depois, Mahatma Gandhi, líder espiritual e político, reafirmou essa devoção como um pilar ético da Índia moderna. “Proteger a vaca é o símbolo externo da proteção de toda a vida fraca e indefesa da Terra”, dizia. Para Gandhi, a vaca representava o amor que não exclui ninguém — nem o homem, nem a natureza.
Nos séculos XX e XXI, a sacralidade da vaca extrapolou a esfera espiritual. Grupos nacionalistas hindus passaram a usar o culto à vaca como instrumento de identidade cultural e política, frequentemente em oposição a comunidades muçulmanas e cristãs, que consomem carne bovina. Em alguns estados da Índia, matar ou vender vacas é crime punido com prisão.
Essas tensões mostram como um símbolo de compaixão pode, paradoxalmente, tornar-se fonte de conflito. O que antes era devoção transformou-se, em certos contextos, em bandeira ideológica.
Mesmo em meio à modernização e à globalização, as vacas continuam onipresentes nas ruas indianas. Alimentadas por comerciantes e devotos, elas caminham lentas entre carros, templos e mercados, lembrando aos transeuntes a presença do sagrado na vida comum.
Em vilarejos, seu esterco ainda serve como combustível, o leite é usado em rituais e o toque em sua fronte é gesto de bênção. Há templos dedicados exclusivamente às vacas, e asilos — conhecidos como gaushalas — onde elas são cuidadas até a morte natural.
A vaca, na Índia, não é venerada por sua utilidade, mas por seu espírito. É a representação do equilíbrio entre a terra e o céu, da gratidão e da doação, do respeito à vida e ao ciclo natural.
Num mundo cada vez mais apressado, em que tudo é medido por produtividade, a vaca sagrada permanece como lembrete silencioso de uma filosofia milenar: a de que a verdadeira riqueza não está no que se consome, mas no que se respeita.
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Anabelle Santa’cruz é Editora de Oráculos
