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Histórias que nascem do silêncio e do abismo humano

Algumas escritoras constroem pontes entre o vivido e o imaginado. Outras escavam os silêncios — e, ao tocar no que é íntimo, revelam o que é de todos. Roseane Sousa faz as duas coisas. Com uma escrita afiada e sensível, ela transita entre o trauma e a delicadeza, entre o real e a ficção, entre a mulher que escreve e as mulheres que vivem em suas páginas.

Professora e revisora, Roseane vive em Jundiaí, no interior de São Paulo. Tem 46 anos, é mãe de dois filhos adolescentes, gosta de mar, de gatos e de livros. Formada em Letras e Pedagogia e pós-graduada em Revisão de Textos, é professora de Ensino Fundamental, exercendo atualmente o cargo de coordenadora pedagógica. Há cerca de 10 anos, tomou a escrita como ofício, tendo publicados os romances Vaivéns da Alma e Insídia e os contos Sutilezas do Amor – finalista do Prêmio Book Brasil em 2020, e Hiatos, além de algumas participações em antologias.

Conheci a autora Roseane de Sousa através de um programa de entrevistas da TV Senado. Ela falava sobre Jamile, personagem de seu livro Insídia. Instigada pela trama da história, adquiri a obra. Li de um sopro só.

Obras
Em Insídia, mergulhamos em uma camada da existência contemporânea. Jamile, sufocada por um casamento esvaziado, vê no mundo digital um possível respiro — ou seria uma nova prisão? A obra desafia certezas sobre liberdade, desejo e identidade, mostrando como nossos refúgios também podem ser armadilhas.

Em Vaivéns da Alma somos apresentados a Olívia, uma professora que tenta reconstruir sua vida após um episódio devastador. A narrativa, que poderia ser lida como um drama psicológico, vai além: é um retrato sutil de como a alma resiste, mesmo quando tudo parece ruir.

Hiatos, por sua vez, é quase um sussurro. Um conto curto, mas de impacto profundo. Nicole, uma menina marcada por ausências e violências, nos confronta com as dores que muitas vezes preferimos não ver. É uma história sobre o não-dito — e sobre o que acontece quando os gritos são abafados por anos.

E vem aí In Vitro, seu novo livro, que promete ser mais uma imersão corajosa. Inspirado na história real dos crimes cometidos por um ex-médico famoso, o romance conta a história de Helen, uma mulher que transita entre a dor e a negação da realidade após passar pela experiência da infertilidade no casamento e pelos desafios de uma fertilização assistida.

Roseane escreve porque sente. E sente porque vive. Seus livros são convites — às vezes ternos, às vezes ásperos — para olharmos de frente o que carregamos por dentro. Não para resolver, mas para reconhecer. E, quem sabe, transformar. Para que os leitores do Café Literário possam conhecer um pouco mais a autora Roseane Sousa, fizemos com ela uma rápida entrevista.

Cinco perguntas
Suas personagens frequentemente habitam fronteiras — entre o trauma e a cura, o desejo e a culpa, o silêncio e o grito. O que te atrai nesses espaços de tensão? Ao escrever sobre temas tão sensíveis, como violência doméstica, luto ou infertilidade, você se protege de alguma forma? Ou é a escrita que te oferece abrigo?

Não sei definir o que me atrai nessas temáticas. Ouço, vejo, me incomodo, sinto e escrevo. O comportamento humano me causa curiosidade desde criança, sempre fui tive muita sensibilidade pelas dores alheias, especialmente as dores características das mulheres, que são ao mesmo tempo da outra e de todas nós. Cresci vendo telenovela e jornais sensacionalistas. Minha mãe ouvia programas nas rádios AM e eu amava um quadro do Programa Eli Correia chamado “Que saudade de você”, em que ele lia cartas contando tragédias, muitas trazendo crenças no sobrenatural, ficava fascinada com aquelas histórias. Talvez essa exposição precoce a temas trágicos tenha me moldado enquanto escritora. Conforme fui amadurecendo e entendendo a dinâmica das relações humanas, me compreendendo enquanto mulher numa sociedade ainda muito patriarcal, as histórias de violência contra nós mulheres passaram a me causar revolta, indignação e desejo de mudança. A escrita é uma forma de extrapolar esses sentimentos. Escrever sobre a dor é cutucar feridas, sinto as dores das minhas personagens e isso muitas vezes me angustia. Mas, ao mesmo tempo, escrever sobre isso é uma forma de elaborar questões que me incomodam, de me desconstruir e reconstruir. Nesse sentido funciona de modo semelhante a uma terapia. Embora as histórias de minhas personagens não sejam minhas histórias, suas dores respingam em mim e me ajudam a lidar com as minhas dores também.

Como sua trajetória como educadora e revisora alimenta (ou desafia) sua criação literária? Você escreve com a autora, a professora ou a leitora em mente?

Roseane: Sempre acreditei na figura do professor pesquisador; o hábito de pesquisar em meu trabalho como professora se estende ao ofício de escritora. Mesmo na ficção, precisamos ser responsáveis com certas questões. Além disso, ser professora exige da gente saber observar. Ao longo de minha trajetória, fui refinando minha capacidade de observar e analisar para poder agir. Esse olhar apurado para as pessoas e as situações em que vivem são essenciais para construir os personagens e as tramas que os cercam.

Com “quem” escrevo? Num primeiro momento, escrevo com os personagens. São eles que gritam em minha cabeça e pedem para que suas histórias sejam trazidas ao mundo. Mas essa é uma escrita ainda muito primitiva do que vai ser levado a público, um primeiro rascunho. E é aí que entram todas as minhas outras faces. A leitora é a primeira a agir, determinando o que agrada e o que não agrada, o que é excesso e o que ainda precisa ser dito. A Roseane autora vem junto com a Roseane leitora, fazendo os refinamentos que o texto exige, trazendo a ele o estilo desejado necessário para que se torne literatura. A revisora está ali o tempo todo, às vezes brigando com a autora que quer se ver livre das amarras que padronizam os textos, às vezes aplaudindo uma criação diferente, mas principalmente nas diversas reescritas do texto.

Se pudesse conversar com uma de suas protagonistas, qual seria? E o que você perguntaria a ela?

Roseane: Com Olívia. Não tenho uma pergunta específica para fazer a ela, mas é, das minhas personagens, aquela com quem mais me identifico. Ela também é professora, gosta de coisas que eu gosto, pensamos de modo muito parecido. Não tocaria em sua ferida se ela não tocasse no assunto. Confesso que, por ter sido minha primeira protagonista, me mantive em minha zona de conforto, usando muito de mim para caracterizar minha personagem, por isso tanta identificação.

In Vitro amplia o debate sobre maternidade e afeto em contextos nada idealizados. O que você espera provocar nos leitores com essa nova obra?

In Vitro (não sei ainda se a editora vai querer manter esse título) surge da ideia de criar uma ficção inspirada nos crimes de um ex-médico famoso. Foram muitas tentativas de escrita até chegar num formato que me permitiu contar o que pretendia. Não fica claro se a busca de Helen pela maternidade é, de fato, um desejo de ser mãe, de amar, cuidar e educar; ou se é uma busca por cumprir um papel social que acredita ser o seu: o desejo de mostrar ao mundo uma família perfeita, o que a deixa obcecada pelo desejo de gestar. No entanto, a realidade vai se tornando cada vez mais distante de sua idealização, culminando num filho negligenciado e uma mãe mentalmente doente. Espero provocar nos leitores, além de curiosidade que o leve a tentar juntar as partes do quebra-cabeça que a leitura traz, reflexões acerca dos temas direta ou indiretamente abordados: preconceitos, saúde mental, ética médica, maternidade como realização de toda mulher, estruturas familiares etc.

Qual dos seus livros foi o mais difícil de escrever?

In Vitro. Meu primeiro romance escrito em primeira pessoa, o que pode ser banal para muita gente, mas pra mim gera uma dificuldade imensa. Por ter me inspirado em histórias reais, a construção do enredo demandou, além de muita pesquisa, um grande cuidado na representação dos personagens e dos fatos, não é fácil lidar com um tema tão delicado e que machucou tanta gente.

Além da dificuldade com o tema, esbarrei em várias dificuldades técnicas: a estrutura do texto, a voz narrativa, a escolha discursiva, o papel de cada personagem… enfim, foi um grande desafio dar a essa história um tom que me agradasse e que possa vir a agradar futuros leitores. Acho que nunca precisei reescrever tantas vezes uma história, mudando tom, foco narrativo, discursos. A história não é contada de forma linear, cronológica. A escolha de como intercalar os capítulos não foi fácil, foi um jogo de tentativa e erro constante. E a cada lacuna percebida, novas configurações eram exigidas na organização. Eu já havia escrito contos sem uma ordem cronológica, mas, por se tratar de textos mais enxutos, encaixar os capítulos é algo mais controlável. Num romance é muito mais desafiador e só vou saber se deu certo quando o livro chegar nas mãos dos leitores.

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Para os livros físicos, através do e-mail: roseanesousa@hotmail.com

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