Ela se fora para sempre, morta em um acidente de trânsito, e ele sentia sua ausência em cada fibra de seu corpo, em sua mente, em seu espírito.
Na noite escura da alma em que fora lançado, tinha poucos prazeres; a leitura era talvez sua única fonte de devaneio, de esquecimento momentâneo, antídoto temporário para a dor e a solidão.
Certo dia, ao retomar a leitura de A fugitiva, sexto livro do romance ‘Em busca do tempo perdido’, deparou-se com as seguintes palavras: “É que essa mulher não fez senão suscitar em nós, por uma espécie de apelo mágico, mil elementos de ternura existentes em estado fragmentário que ela congregou e uniu, obturando qualquer fenda entre eles; somos nós mesmos que, conferindo-lhe seus traços, fornecemos toda matéria sólida à pessoa amada”.
Depois de refletir profundamente sobre essa passagem, descartou-a como metáfora e disse a si mesmo:
– Proust refere-se à perda de Albertine, seu amor, morta em um acidente enquanto cavalgava; quem sabe não consigo fornecer a matéria sólida para devolver a vida à minha amada, perdida em circunstâncias semelhantes?
Ele já tinha ouvido falar em poeira de sonho, capaz de realizar verdadeiros milagres, e recebera, em linhas gerais, instruções de como materializá-la – se é que se pode empregar esse verbo em relação a matéria tão sutil. Estava meio cético e temia fracassar, mas nada tinha a perder.
À meia noite, hora propícia para apelos mágicos, iniciou os procedimentos. Conjurou a poeira e teve nas mãos algo que não conseguia ver, mas em cuja existência acreditava com todas as forças. Depois modelou uma grosseira estátua de barro e, Pigmalião redivivo a criar sua Galateia, começou a trabalhar.
Primeiro arredondou o ventre. Modelou em seguida as longas pernas e sorriu: a estátua começava a adquirir contornos femininos. Cuidou depois dos braços delicados, das mãos esguias e, a cada parte do corpo burilada, espargia delicadamente sobre ela a poeira invisível.
As feições deram-lhe mais trabalho, mas encarou o desafio. No final, examinou criticamente a estátua de mulher que havia criado. Estava longe de ser tão atraente quanto sua amante perdida, mas – com uma pitada de boa vontade – parecia viva.
“Agora só me resta esperar que a poeira de sonho faça a sua magia”, pensou.
Antes do alvorecer, percebeu que a nova Galateia começava a mover-se. Viu, deslumbrado, a estátua dar novo acabamento aos pés e a outras partes do corpo de que ele descuidara, embelezando-os; também aumentou de tamanho, até atingir a altura da falecida. Afinal, a mulher renascida espreguiçou-se como uma gatinha, deu-lhe um sorriso radiante e perguntou:
– O que estou fazendo aqui? Por que estou nua? Quem é o senhor?
Ele tentou explicar-lhe, mas sentia que suas palavras atabalhoadas não faziam sentido. Então desistiu de mencionar o grande amor dos dois e apelou para o mito grego de Pigmalião:
– Sou seu criador – e acrescentou, esperançoso:
– Preciso que você me ame.
– Amá-lo? Ah, não! – E riu, cruel como tantas mulheres. – O senhor diz que me devolveu a vida, agradeço, mas não sinto amor por sua pessoa.
Abriu um armário, pegou um vestido que fora seu, quando ainda estava viva, colocou-o e saiu da casa, criança em corpo de mulher, pronta a descobrir o mundo.
E ele percebeu que a poeira de sonho não conseguia fazer renascer um sentimento perdido. Mas, pelo menos, conseguira devolver a vida à antiga amante. Quem sabe não conseguiria conquistá-la – não reconquistá-la, sentiu que sua amada se fora para sempre –, mas conquistá-la como se fosse a primeira vez, roubando-a dos braços de homens mais jovens e mais atraentes do que ele?
Deu um suspiro melancólico e foi dormir, um pouco menos deprimido que o habitual.
