Conta a Bíblia que Taré, pai de Abrão [mais tarde Abraão] partiu de “Ur dos caldeus” juntamente com o filho, a nora Sarai [mais tarde Sara], esposa de Abrão, e o neto Ló, sobrinho de Abrão, “para ir ao país de Canaã, mas, chegados a Harã [núcleo da Alta Mesopotâmia, hoje pertencente à Turquia], ali se estabeleceram”.
O relato bíblico prossegue, informando que Iahweh disse a Abrão: “Deixa teu país, tua parentela e a casa de teu pai, para o país que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu nome; sê tu uma bênção!”
Como se percebe, os cronistas autores da Bíblia silenciam quanto aos motivos do primeiro êxodo, quer dizer, do abandono de Ur dos caldeus por Taré e Abrão. Foi para suprir a omissão dos coleguinhas que escrevi este conto. Espero que os fundamentalistas religiosos cascudões, se não gostarem (duvido que gostem), pelo menos não me mandem para as profundas do inferno ou seu equivalente em palavrão castiço.
Então lá vai.
Taré, morador de Ur dos caldeus, caminhava apressado pelas ruas da cidade. Era um homem forte – viveria 205 anos, segundo a Bíblia –, não um rico-de-marré-de-si, mas enquadrado na categoria rico-de-marré-marré- marré: possuía camelos, bovinos, tudo que representava prosperidade no sul da Mesopotâmia.
O motivo de sua pressa? Estava decidido a pedir a um amigo a mão da senhora mãe dele, uma viúva bonitona.
Quando se aproximou da casa do chegado, avistou-o na rua, diante da porta. E também, aproximando-se, duas mulheres maduras: sua futura esposa (estava certo de que o pedido seria atendido) de braço dado e trocando risinhos cúmplices com uma outra, igualmente bonita.
Cumprimentou o amigo e perguntou:
– Quem é aquela mulher, que se aproxima com sua mãe?
– É a mãe de minha mulher. Minha mãe e minha sogra estão voltando do templo. – Deu um risinho. – Coitadas, devem estar exaustas!
– Templo? Exaustas? – o coração de Taré pareceu apertar em seu peito, ele pressentia o que seria revelado em seguida.
– Cansadas do serviço que ambas prestam no templo de Inanna – disse o amigo, utilizando a antiga denominação suméria para a deusa Ishtar, divindade do amor, da fertilidade e da guerra. – Mas pelo menos devem ter se divertido…
O coração de Taré apertou ainda mais.
– Sua mãe e sua sogra são prostitutas no templo de Inanna?
– Fora prostitutas sagradas, sim. Mas se afastaram, casaram, tiveram filhos, enviuvaram…Hoje só vão ao templo para se divertir. Você compreende, são mulheres na força da idade, cheias de desejo… – Diminuiu o tom de voz para fazer uma confidência:
– E quando o desempenho dos adoradores da deusa é insatisfatório, brincam entre si. Pelos braços dados e pelos risinhos maliciosos que trocam entre si, deve ter sido o que aconteceu hoje.
E completou, reduzindo a pó de traque o coração de Taré:
– Ambas me disseram que a amiga é uma delícia, pena que eu não possa aproveitar!
Aquilo foi demais para o infeliz pretendente. Disse que tinha um compromisso urgente, despediu-se e afastou-se, antes que as duas prostitutas sagradas aposentadas (ou nem tanto assim) chegassem.
“Um passado promíscuo eu posso aceitar na minha noiva”, pensou Taré, “afinal não sou nenhum santo. Mas mulher com mulher… Abominação!”
Na mesma noite, sentindo uma baita dor de corno – sem que tivesse, diga-se, o menor motivo para tanto –, Taré reuniu os familiares e informou rispidamente que em poucos dias deixariam Ur dos caldeus, “aquele antro de iniquidade”, levando seus rebanhos e outros bens, tudo o que pudessem transportar.
