Ingrid, 25 anos, era uma lourinha de olhos azuis – a imagem clássica de uma descendente de alemães. Morava em Pelotas, no Rio Grande do Sul, e falava alemão em casa, com os pais e avós; fora disso, tentava por todos os meios abrasileirar-se. Tomava chimarrão, apesar de detestar o sabor; torcia pelo Inter, embora não gostasse de futebol; vestia-se de prenda nas festas dos Centros de Tradições Gaúchas, e dominava os passos da vanera e da milonga, a ponto de despertar a inveja das outras moças (algumas, mais que rodadas, estavam mais para chinas do que para prendas). Em resumo, Ingrid era uma mescla perfeita das influências culturais germânicas e luso-brasileiras, estas em versão gaudéria.
Mas havia um aspecto que a singularizava: a alemãzinha era apaixonada pela cultura africana. Chegara a pensar em viver na Nigéria ou em Angola, e aprender o iorubá e o quimbundo, as línguas dos candomblés da Bahia e de Angola. Não foi por pouco, mas abraçou o batuque, a versão gaúcha do candomblé.
Ingrid poderia viver feliz, fazendo a cabeça em algum terreiro e incorporando a dimensão africana a sua mescla germano-luso-brasileira em chave bagual. Mas ela queria mais, não se contentava em ser filha de santo, desejava ser mãe de santo e, em especial, dominar o jogo dos búzios e outras formas de adivinhação ritual. Via-se como uma futura servidora de Ifá, o senhor dos segredos no candomblé iorubá. Nem precisava dominar o difícil mister dos babalaôs, sacerdotes de Ifá; confiava em seu taco, quer dizer, no seu psiquismo, para descobrir o santo de cabeça de qualquer vivente. Olhava firme para ele, respirava fundo e decretava: filho de Xangô ou filha de Iansã, conforme o caso. Com isso, enchia o saco de todos os seus amigos.
Certa noite, Ingrid estava num bar com sua galera, todos meio bêbados e querendo se pegar. Mas ela empatou a foda. Olhou em volta e falou em voz que se pretendia misteriosa.
– Os orixás estão presentes. Sinto suas vibrações., estou toda arrepiada.
– Deve ser o frio, tá demais, de matar cuzco – disse um carinha.
– Ou tesão – completou uma guria, com um risinho. – Também arrepia, sente meu braço – e deslizou a mão do rapaz sobre sua pele, num oferecimento pra lá de explícito.
A futura sacerdotisa de Ifá fez que não notou.
– Sim, o sagrado se manifesta – prosseguiu. E escolheu a primeira vítima.
– Ana, tu está com uma briga braba de cabeça, entre Iemanjá e Oxum. Isso fecha teus caminhos. E está usando brincos de prata, Oxum é a Mãe do Ouro, ela não gosta e não te ajuda – e aconselhou:
– Se tu quiser ter sorte na vida, usa algum objeto de ouro, vais entrar na vibração plena de Oxum.
– Tenho uma restauração a ouro num dente, será que basta para Oxum? – indagou Ana, com uma expressão inocente (real ou fingida) estampada no rosto.
Ingrid explodiu.
– Bah, parem de se arriar com as divindades! – desistiu da investida contra Ana e olhou em volta, procurando outro alvo.
– Alfredo, tu é filho de Ossanha, pai das plantas, senhor dos segredos das folhas. Ele é o médico supremo, combate doenças com suas plantas medicinais e está presente em todos os rituais dos outros orixás. Os babalorixás ensinam: “Sem folha não há orixá”.
Inflamando-se, ela o orientou:
– Então, Alfredo, para abrir teus caminhos, ande sempre com um punhado de ervas contigo. Caminhe pela mata sem rumo certo e deixe que as divindades te mostrem quais ervas colher.
Alfredo parou de devorar salgadinhos, deu um último gole no refrigerante ultra doce, removeu os óculos escuros, olhou para Ingrid com olhos avermelhados e falou:
– Acertou, guria, tenho sempre erva comigo. De manhã, pro chimarrão; depois, de outro tipo – olhou para a turma e convidou:
– Falar nisso, tô com unzinho aqui, bem apertado. Alguém quer uma presença, dar um tapinha?
Todos aceitaram, menos Ingrid que, furiosa, desistiu do irreverente filho de Ossanha, maconheiro de carteirinha.
A moça procurou um novo filho de santo a ser proclamado – e se deteve num homem novo no grupo, alto, moreno e forte, de feições bem feitas e braços musculosos, que sugeriam uma pegada de derreter qualquer mulher. Sorriu para ele e indagou:
– Não te conheço. Qual é o teu nome?
– Me chamo Jorge, moça.
– Tu sabe que são Jorge tem sincretismo com o senhor Ogum, divindade guerreira, não sabe? Basta olhar pra ti pra ver que é forte, um guerreiro, um verdadeiro filho de Ogum.
Jorge olhou para Ingrid, surpreso, e contra-atacou:
– Capaz! Tá boa, santa? Guerreiro, euzinha? Nem morta – e bateu os cílios sedutoramente.
A terceira desilusão foi a gota d’água. Ingrid levantou-se furiosa e saiu sem se despedir. Renegou o batuque e ingressou numa igreja neopentecostal. Hoje afirma – talvez procurando se convencer, mais que aos ouvintes – que os orixás são capetas, que nem os exus, e que batuque e candomblé levam direto ao inferno.
