O retratado de hoje em O Lado B da Literatura bastante conhecido dos leitores do Café Literário, já que seus contos, muitas vezes em formato de folhetim, são frequentemente publicados por aqui. Por isso mesmo, é conhecido aqui na redação do Notibras pela merecida alcunha de Rei dos Folhetins. Trata-se do talentoso escritor J. Emiliano Cruz (Jorge Cruz Marçal), gaúcho de Santo Ângelo, mas residente na capital paulista há mais de 20 anos.
Que o J. Emiliano é um escritor de pena afiada, ninguém parece duvidar. No entanto, aqui o buraco é mais embaixo e vamos remexer no passado desse apaixonado torcedor do Grêmio. Aliás, segundo o próprio, essa paixão só fica atrás do amor que ele possui pela filha, Letícia.
Descobri que ele estudou e trabalhou em Santa Maria, além de ter morado em Porto Alegre na década de 1990. É bacharel em Direito com mestrado em Metodologia do Ensino Superior, foi professor de História e participou ativamente do sindicalismo como diretor do Sindicado dos Bancários de Santa Maria, presidente da APCEF/RS – Associação dos Empregados da Caixa Econômica Federal do RS e diretor da FENAE – Federação Nacional dos Empregados da CEF.
Em São Paulo, J. Emiliano foi diretor da APCEF/SP e professor de História. Atualmente, é agente federal lotado na Superintendência/SP da PF. Diante dessa vida atarefada, há aproximadamente dois anos retornou o prazer da escrita literária, que já havia ocupado um espaço especial no passado.
“Após publicar meu primeiro conto no Café Literário, não parei mais. Hoje, a literatura ocupa papel importante no meu cotidiano e na minha vida.”
J. Emiliano se diz leitor voraz de escritores clássicos e contemporâneos, cinéfilo praticante e amante da MPM e do Rock. Suas maiores influências e inspirações são o Fernando Pessoa, Luis Fernando Verissimo e Chico Buarque de Holanda.
Vamos deixar o nosso querido e carismático virtuose das letras contar algo que vivenciou ainda quando era pouca coisa maior do que um piá. Perceba que ele é conhecedor de filosofia e não mero repetidor de frases filosóficas.
“Algumas vezes estive inserido em situações de vida que, mais do que nunca, me trouxeram à mente a emblemática frase do filósofo espanhol Ortega Y Gasset: ‘O homem é sempre ele e as suas circunstâncias’…
Creio que ele quis dizer com isso que não é possível considerar o ser humano como sujeito ativo sem levar em conta simultaneamente tudo o que o circunda, a começar pelo próprio corpo e o contexto factual ou histórico em que está inserido.
Assim, a união do “eu” e da circunstância é indissociável, sendo impossível compreender um sem o outro. Assim, de forma geral, o resultado das nossas decisões está atrelado a nós ou à nossa parte mais estável, mas também às peculiaridades do momento e do lugar.
Por este motivo, quando o filósofo afirmava que “Eu sou eu e a minha circunstância; se eu não a salvar, não hei de me salvar”, referia-se à força desta união que existe entre quem somos e o que nos rodeia.
Relato aqui uma ocasião muito marcante em que encarei e senti na pele esse mutualismo entre o individual e o coletivo, entre o “eu intrínseco” e as circunstâncias que me rodeavam.
Na década de 1980, eu e meu melhor amigo João completamos 18 anos e ingressamos, via vestibular, na faculdade de Engenharia Florestal em uma universidade do Rio Grande do Sul. Cursamos o primeiro semestre e, terminado esse período, tínhamos uma escolha para fazer: prestar o serviço militar obrigatório ou solicitar que nosso nomes fossem para a lista de reservistas.
Como já éramos alunos de uma universidade federal, não seria difícil optarmos pela segunda situação. Mas éramos jovens, curiosos, aventureiros, sedentos de novidades e de ação.
Então optamos por fazer o teste para ingressarmos no curso de oficiais da reserva – CPOR, opção restrita a quem já tinha completado o ensino médio. Não tivemos dificuldade para sermos aprovados entre os 120 selecionados da circunscrição militar à qual nossa cidade pertencia.
Desta forma, frequentávamos o curso militar durante a manhã e a universidade à tarde, o que nos obrigou a trancar a matrícula das matérias da faculdade do horário matutino.
Aos poucos, fomos assimilando a paradoxal situação e nos adaptando a balancear a rígida disciplina militar da caserna com o burburinho libertário do ambiente universitário. De manhã, alinhamento, disciplina e rigidez, à tarde, descontração, alarido e reflexão.
Após seis meses como alunos do CPOR, vivenciamos e experiência mais temida por todos que já prestaram o serviço militar na circunscrição: a semana em que todos do curso ficavam confinados em uma pequena floresta no interior mais ermo do estado.
Foi aí que comprovamos que poderíamos mesmo ser combatentes em uma situação real de guerra.
Passamos por uma marcha diurna de 30 quilômetros com armas e mochilas nas costas, exercícios técnicos de tiro e artilharia real, simulação de assalto noturno ao acampamento “inimigo”, dormimos ao relento sem cobertores sob uma temperatura de quase zero graus, rastejamos durante horas em terra nua ou em gramado espinhoso, tudo com alimentação restrita de enlatados próprios do Exército.
Mas a prova final de sobrevivência, controle mental sob pressão e trabalho em grupo veio nos dois últimos dias: a caminhada noturna de orientação. Éramos em 40 na turma de artilharia e fomos divididos em 4 equipes de 10.
À meia-noite, fomos levados e deixados em diferentes pontos no meio de uma mata cerrada, cuja área somava vinte quilômetros quadrados. Nossa missão era, guiados apenas pelas estrelas e por uma bússola, sem lanternas ou velas, chegar ao acampamento até às oito horas da manhã. Havia um prêmio para a primeira e um castigo para a última equipe a chegar.
Não tenho vergonha de admitir que, mesmo sendo capricorniano, pela primeira vez senti um medo irracional.
A escuridão era absoluta, a tentativa de raciocinar revelava-se infrutífera, o barulho das aves noturnas aprofundava a sensação de estarmos cercados por fantasmas, zumbis, feras ou lobisomens. As fantasias mais inconscientes e primitivas afloravam e inundavam as nossas imaginações a todo momento.
Tivemos que cruzar córregos, subir ladeiras íngremes, abrir caminho com facões, desviar de plantas espinhosas e de buracos bem fundos, tudo isso sem ter certeza que o nosso rumo estava correto. Caminhávamos a maior parte do tempo de mãos dadas, pois era muito fácil alguém se desprender do grupo e ficar perdido, sozinho em meio ao breu e à mata cerrada.
A sorte da nossa equipe é que o meu amigo João era um ladino chefe-escoteiro e, como tal, um especialista em orientação e caminhadas em meio a matas.
Durante o nosso percurso, encontramos outra equipe que estava perdida e desalentada, todos sentados sem mais vontade de andar em círculos. Convidamos os colegas para se incorporarem a nós e seguimos em frente, confiando na expertise do nosso guia escoteiro que se orientava mais pelas estrelas do que pela bússola quase imperceptível.
De hora em hora, parávamos para descansar, conversar um pouco para dissipar os temores e retomar o fôlego. Tínhamos barras de cerais e de chocolate para ajudar na reativação da energia corporal. Já, a mental, trabalhávamos coletivamente da melhor maneira possível.
Desde o início da nossa jornada noturna na mata, eu lembrava de um romance que tinha lido um ano antes, “Os nus e os mortos”, de autoria do escritor americano Norman Mailer.
Nessa obra jornalística-literária que tem a segunda guerra mundial como pano de fundo, o autor propõe uma reflexão sobre os sentimentos do homem comum quando premido pelas circunstâncias da guerra, suas fraquezas e seu esforço extremo para preservar a humanidade e a dignidade em meio ao caos, a impotência e à morte.
Mailer disseca com profundidade nessa obra outros temas inerentes à existência como solidão, camaradagem e sexualidade, quando o indivíduo está submetido a uma circunstância de hierarquia de poder.
Em meus sobressaltos íntimos e inconfessáveis, de hora em hora, eu imaginava que poderia ter o mesmo triste destino do tenente Robert Hearn, um dos personagens principais da história. Ele morreu durante uma missão na selva quando liderava a sua patrulha, entretanto, afastava esse pensamento quando lembrava que a nossa circunstância era de predominantemente de solidariedade e não de ódios mútuos e rivalidades reprimidas como na obra de Mailer.
Já no limite da exaustão, quase oito horas depois de iniciada a nossa longa jornada noite adentro, finalmente avistamos o acampamento e levantamos os braços em agradecimento à benevolência divina.
Graças ao incrível senso de orientação do meu amigo João, fomos os primeiros a cumprir a missão e escapamos do castigo.
Lembro da última equipe a chegar duas horas depois. Não sei como, mas seus integrantes ainda encontraram forças para “pagar” trinta apoios, movimentos de flexão em sequência com os braços no chão.”
Confesso que, mesmo após tantos retratados, o J. Emiliano Cruz se tornou um dos mais marcantes. Não à toa, é um nome a ser lembrado, pois história é o que não falta. E todos sabemos que um escritor precisa delas para se inspirar.
