Dias atrás, vagando pela internet, me deparei com uma ilustração singela, mas desconcertante. Nela, um pai dizia à filha: “Filha, quando você crescer, quero que seja assertiva, independente e determinada. Mas, enquanto é criança, quero que seja passiva, maleável e obediente.”
Ali estava, em poucas palavras, o retrato de uma contradição antiga: queremos adultos críticos, mas educamos crianças para não questionar.
Fiquei longos minutos encarando aquela imagem. Não porque fosse a primeira vez que pensava sobre isso, mas porque, de tempos em tempos, a vida nos obriga a revisitar velhas ideias. Afinal, por que, durante tantas gerações, a obediência foi tratada quase como uma virtude sagrada?
Desde cedo, ouvimos que crianças boas são aquelas que obedecem. Que não argumentam, não questionam, não perturbam. E assim vamos moldando pequenas pessoas a se encaixarem no que chamamos de “bom comportamento”, na esperança de que, um dia, magicamente, elas se tornem adultos autônomos, criativos e assertivos.
Mas a história — sempre ela — parece nos ensinar o contrário. Os grandes avanços da humanidade nasceram da desobediência. Foi desobedecendo que muitos escravos conquistaram a liberdade. Foi desobedecendo que as mulheres ocuparam o espaço que lhes era negado. Foi desobedecendo que minorias resistiram a regimes autoritários, que povos subjulgados recuperaram suas vozes.
A obediência cega, por outro lado, nos conduziu a alguns dos episódios mais sombrios de nossa trajetória coletiva. Basta pensar na Segunda Guerra Mundial. Os soldados de Hitler, se tivessem desobedecido às ordens absurdas e desumanas que receberam, poderiam ter evitado muitas mortes. Quantas vidas teriam sido poupadas se o “não” tivesse sido dito ali onde o “sim” criminoso foi repetido?
A desobediência, quando nasce da consciência, é um gesto de coragem. É recusar-se a ser cúmplice do inaceitável.
Por isso, quando penso na educação das novas gerações, vejo que talvez o nosso maior desafio não seja formar crianças obedientes, mas formar crianças éticas, sensíveis, capazes de discernir quando obedecer e, principalmente, quando desobedecer.
Como já dizia Belchior, com sua lucidez poética:
“O que transforma o velho no novo
Bendito fruto do povo será
E a única forma que pode ser norma
É nenhuma regra ter
É nunca fazer nada que o mestre mandar
Sempre desobedecer
Nunca reverenciar”
Talvez aí esteja a semente de um mundo mais justo.
