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Joel ansiava por ser reconhecido como escritor maldito

Joel era poeta, e bom poeta. Mas queria mais, ansiava por ser reconhecido como escritor maldito, e não conseguiu. Em parte, reconhecia, por vacilo seu.

Baiano, Joel conheceu Gilberto Gil e Torquato Neto no colégio Marista de Salvador, onde os três estudavam. Ele estava no 1º colegial, os dois no 3º; o adolescente acompanhava, cheio de admiração, a trajetória dos mais velhos, que já lançavam raízes na cena cultural de Salvador.

Anos depois, Joel publicou um poema forte, transgressor, que recebeu elogios de Torquato.

– Bicho, gostei dos teus versos, exprimem bem a nossa época. Olha, sabes que Gil, Caetano e outros acabamos de lançar um movimento cultural contestador, o tropicalismo. Aliás, encarregaram-me de escrever uma espécie de breviário, penso em chamá-lo de Tropicalismo para principiantes. Queres juntar-se a nós? Haverá uma festinha hoje onde discutiremos a coisa, somos festeiros – e deu uma risadinha. – Não deixe de ir – e passou-lhe o endereço.

Joel não podia acreditar, seus sonhos estavam à beira de se realizar. Mas havia um problema, um obstáculo com nome e sobrenome: Maria das Graças Magalhães, sua namoradinha, quase noiva.

Bela e elegante, Gracinha pertencia a uma das famílias mais tradicionais e conservadoras da Bahia. Se ele se considerava de vanguarda, ela era uma retaguardista de carteirinha. Sentia um solene desprezo por marginais que queimavam fumo, andavam meio sujos… Nunca que ela aceitaria a marginália. E jamais, em tempo algum, se mudaria pro Rio e/ou São Paulo, polos do movimento. Quanto à liberdade sexual predominante entre os tropicalistas, nem pensar: a seus olhos, não passava de promiscuidade, sacanagem da grossa.

Consciente de tudo isso, Joel não compareceu à festinha. Sabia que sua adesão ao tropicalismo traria, cedo ou tarde, mais cedo do que tarde, o fim do relacionamento com Maria das Graças. E, contradições do devir, o ex-quase-futuro poeta maldito estava perdidamente apaixonado por aquela reacionariazinha sedutora.

(O cavalo arreado, imóvel em sua porta, olhou-o com desprezo, por sua relutância em montá-lo, e se afastou para nunca mais voltar.)

Um segundo corcel ajaezado se deteve diante de sua residência na década de 1970, com as produções selvagens da chamada “geração mimeógrafo”. Torquato, que se suicidou em 1972, tornou-se um ícone dos novos alternativos, sucessores do tropicalismo; na sua condição de chegado ao guru de Ana Cristina César, Chacal, Cacaso, Paulo Leminski e tantos outros, seria aceito sem dificuldades pelos mimeografantes. Porém, mais uma vez, Joel vacilou. Ele e Maria das Graças (o “Gracinha” não era mais usado nem mesmo na cama) tinham um casal de filhos, ela não suportaria o convívio, mesmo a distância, com os novos marginais, iria separar-se, era fundamental assegurar um lar estável às crianças, então não embarcou no movimento.

(O segundo cavalo arreado, imóvel em sua porta, olhou-o com um misto de desprezo e piedade, por sua relutância em montá-lo – e por estarem diminuindo as oportunidades de o poeta se marginalizar – e se afastou.)

O tempo passou. No início dos anos 2000, a esposa comunicou que iria se separar.

– Os filhos estão criados, não nos amamos mais, melhor assim. Conheci alguém que me faz vibrar de novo, sentir-me jovem outra vez. Fique com essa casa, vou embora – e se foi, de mala e cuia.

Foi então que Joel pensou em suicídio, em trilhar o caminho de Torquato, Ana Cristina, Virginia Woolf, Ernest Hemingway e tantos outros escritores. “O suicídio é a única morte digna de um poeta maldito”, disse a si mesmo. Ela não era, não chegara a ser, mas podia findar como um.

Houve longos preparativos. Fez imprimir cópias, em tamanho grande, de seus mais fortes poemas, e as colou pela casa inteira. Despediu-se dos raros amigos, os poucos que haviam sobrado de seu tempo de sonhos generosos, e limpou bem a casa. Só faltava tomar banho, vestir suas melhores roupas, fechar todas as janelas e abrir o gás.

De repente, percebeu que faltava o incenso, planejava acendê-lo, aspirar seu odor até o fim. Contrariado, pensou em adiar por uma noite a partida, mas lembrou que havia uma loja de artigos místicos a quatro quarteirões. Saiu de casa com o traje de faxina – uma camisa velha, bermuda e chinelão.

Naquele momento, a dois quarteirões de sua casa, a PM baiana realizava uma blitz. Joel pisava nos astros, distraído, quando foi interceptado.

– Documentos, cidadão.

A ordem, em tom brutal, o fez retornar ao plano terreno. Meteu a mão no bolso, tateou – e percebeu que deixara a identidade em casa,

– Olhem, estou caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento – e riu com a referência a um clássico do tropicalismo.

Os meganhas não acharam a menor graça no riso, no mínimo o elemento podia ser enquadrado por desacato à autoridade.

– Sem documentos, né, seu bosta? – e passaram a espancá-lo.

Joel sofria do coração, sabia que não viveria muito tempo – um dos fatores, aliás, que o induziram ao suicídio. Com a surra, tombou por terra, vítima de um infarto fulminante. De certo modo, partiu feliz, pois, mais que o suicídio, a morte em confronto com as forças a serviço dos poderosos é o fim mais glorioso para um poeta subversivo, maldito.

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