Na casa das quatro irmãs, cada uma tinha um destino: Betânia, a mais velha, advogada trabalhista, virou, do alto da sua capacidade, juíza da vida alheia sem concurso; Lena, promotora aposentada que abraçou o esoterismo e as artes plásticas, e por fim trocou pincéis por plantas; Fau, historiadora que ama o jornalismo, ainda jura que a verdade cabe numa frase; e Fernanda — a caçula, a Julia Roberts da família —, professora por vocação e atriz por impulso, apareceu certa tarde com uma novidade que fez o café esfriar na mesa.
— Meninas, decidi fazer as provas para a Escola de Música.
— Escola de quê?, perguntou Betânia, erguendo a sobrancelha como quem suspeita de um golpe.
— De Música!, repetiu Nanda, com o brilho nos olhos de quem descobre um novo verbo. — Quero cursar Canto Lírico.
Lena riu, ajeitando o lenço colorido no cabelo:
— Ah, pronto. Agora a Julia Roberts quer ser Maria Callas.
— Melhor ainda, respondeu Fau, sem levantar o olhar do celular. — Uma mistura de diva grega com sotaque de Taguatinga.
Nanda sorriu, sem se deixar abalar. Havia mesmo algo de helênico em seu rosto. Uma serenidade antiga, de quem parece guardar o segredo dos deuses. A beleza dela não é de novela. É de estátua viva, dessas que respiram arte.
— Não é brincadeira, insistiu. E acrescentou: Sempre amei música. Lembram quando eu fazia a voz grave nas canções de Natal? Pois é. Descobri que isso tem nome: contralto.
— Contralto? Betânia saboreou a palavra, como quem experimenta vinho pela primeira vez. — Parece coisa de tribunal.
— Pois é, doutora, mas não é. É o tom mais grave das vozes femininas.
— Então você vai ser tipo… uma cantora de ópera?
— Isso mesmo. Como Marie-Nicole Lemieux, respondeu Nanda, orgulhosa, como quem já se via em trajes de gala no Teatro Nacional Cláudio Santoro.
Lena, agora curiosa, recostou-se no sofá:
— E se não passar na prova?
— Aí eu tento de novo. Voz não envelhece; amadurece, respondeu Nanda com suavidade.
O silêncio que se seguiu foi cheio de respeito e ternura. Pela primeira vez, as irmãs perceberam que aquela menina — a mesma que encenava Shakespeare na varanda e dava aulas de Artes com dramatização — estava prestes a reinventar-se novamente.
Na semana seguinte, Nanda começou as aulas de técnica vocal. O som que ecoava de seu quarto era profundo, redondo, quase maternal. Fau, intrigada, bateu na porta:
— Isso é estudo ou invocação?
— Estudo, mana. Invocar é o que vocês fazem quando chamam o destino de loucura, enfatizou, dando uma gargalhada.
E assim, entre brincadeiras e serenatas improvisadas, Nanda foi encontrando sua própria partitura. Talvez não se torne uma nova Lemieux — ou talvez sim. O que importa é o canto, esse milagre íntimo que devolve ao corpo o poder de ser instrumento.
No fundo, as quatro sabiam que Nanda não cantava apenas notas, mas lembranças. Cantava as tardes da infância, os medos, as ausências, e o riso de quem, mesmo no caos da vida adulta, ainda acredita que o belo é um caminho possível.
E Betânia, a juíza da vida, foi a primeira a confessar, num raro momento de ternura:
— Nanda… se for pra cantar assim, canta até pra me absolver.
Nanda sorriu. E começou a ensaiar.
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José Seabra é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras, de passagem por Brasília
