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Lenin and McCartney, o feijão e o sonho

Em uma estação de trem de um país indefinido:

— Chegamos, rapazes! Agora que já estão entregues, já vou indo. Além de detestar despedidas, preciso terminar o último volume de “O capital”. Isso está mais complicado que eu pensava. Então, boa sorte!

— Obrigado e boa sorte também, tio!

— Fique bem tio, goodbye!

— Vamos, Paul! O trem para a estação Finlândia vai partir em 20 minutos.

— Então, Vladimir, você quer mesmo ir pra a Rússia, mesmo que o tio Carlos tenha analisado a situação objetivamente e ter concluído que a Alemanha é que seria o país europeu ideal para essa empreitada?

— Estou consciente disso, Paul, mas os trabalhadores russos, apesar de ainda viverem em um país predominantemente agrário, é que tem a passionalidade e o espírito indômito necessários para uma ruptura dessa ordem,

— Olha, mudei de ideia, para mim não dá, Vladimir! Eu estava em dúvida até esse momento, mas agora sinto que o meu caminho é outro.

— Sério? Você não vai querer mesmo ser um dos protagonistas da primeira revolução proletária da História?

— Minha praia é outra, primo! Eu e meus parceiros vamos revolucionar o mundo pela música, pelos costumes e pelo sonho!

— Mas, primo, esqueceste os ensinamentos do tio Carlos sobre isso? As relações materiais de produção é que definem a cultura, a ideologia dominante e a consequente exploração de classe.

— Pode ser, mas a arte, especialmente a música, é que conquista corações para a verdadeira mudança das mentalidades.

— Isso é importante, sim, mas somente a consciência de classe e a práxis revolucionária é que modificam as estruturas para além da mera conjuntura.

— Prefiro acreditar no fator humano, na sensibilidade e na generosidade intrínseca do ser humano. O homem natural é bom, a sociedade é que o corrompe, já dizia Jean Jacques.

— Parceiro, não se engane! Não existe natureza humana e sim condição humana de classe. Por exemplo, em se tratando do pessoal da Faria Lima, certo estava o Thomas: o homem é o lobo do homem.

— Talvez, mas lembre-se, Kafka e Wilde são burgueses, mas nem todos os burgueses são Kafka e Wilde. Os indivíduos sempre podem ser únicos e singulares, independentemente do ninho ou da classe em que nasceram.

— Vai nessa, esses dois são a exceção que confirma a regra! Na real, filhos de peixe, peixinhos são! Os exemplos disso são notórios e abundantes na História, veja o caso emblemático daquele pai e dos seus quatro rebentos que pensam igualzinho a ele… e ninguém renuncia aos seus privilégios se não for forçado a isso pelo Estado.

— Até pode ser, mas penso que uma ruptura abrupta das relações sociais não traria a verdadeira revolução para a vida das pessoas, pois outro tipo de dominação e opressão se instalaria.

— Você acha? E o que você propõe então?

— Creio que pode haver um consenso progressivo civilizatório que impulsionará reformas sociais até uma equidade social, ao mesmo tempo em que a magia da arte pode inundar os espíritos e fazer os indivíduos progressivamente melhores e mais solidários.

— Você pensa assim porque você é um sujeito generoso, mas vai dizer isso para banqueiros, latifundiários, pastores manipuladores, fascistas de carteirinha e outros seres essencialmente gananciosos, sádicos e ególatras. Sem chance deles sentirem um pingo de empatia social ou existencial pelos seus semelhantes.

— Primo, reconheço que alguns deles são paus que nasceram tortos e vão morrer tortos, mas quando a imaginação estiver no poder, eles vão colocar o seu espírito maligno no armário e comungar com o interesse público.

— Primo, a imaginação somente chegará ao poder depois que o pau comer solto, e o bicho pegar para o lado dos opressores. Eles jamais vão largar ou sequer dividir o osso de bom grado…

— Mas é fato que já evoluímos muito, passamos por escravidão, servidão…hoje os trabalhadores, apesar da vida difícil que levam, também usufruem dos benefícios da tecnologia, têm direitos reconhecidos pela lei e são tão cidadãos quanto os patrões.

— Ora, Paul, você sabe que mudou apenas a forma da dominação e da exploração… o capitalismo precisa da desigualdade para existir como sistema, como bem explicou o tio Carlos. E se atualmente existem direitos para a classe trabalhadora, isso foi conquistado debaixo de muita luta, porrada e bomba.

— Então, Vladimir, sinto que chegou o momento da música, da literatura e das outras expressões da arte finalizarem essa missão humanista e civilizadora.

— Como quiser, primo! Que a arte seja cada vez mais contestadora e revolucionária. Da minha parte, amanhã estarei em Petrogrado com os camaradas Leon, Josef e Nádia para impulsionarmos a vanguarda proletária da Rússia.

— Eu também já me decidi, primo! Amanhã viajo com os parceiros John, George e Ringo para a Inglaterra. De lá, a nossa banda de cabeludos vai revolucionar o jeito de fazer música nesse planeta, nos aguarde!

— Então, sucesso para vocês! Que as nossas linhas de ação possam convergir em um futuro próximo… e que logo estejamos nas manchetes dos jornais e nas capas de revistas de todo o mundo.

— Não tenho dúvida disso, sucesso pra vocês também! Sei que logo seremos mais famosos do que Jesus Cristo!

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