No meu trabalho, temos um clube de leitura. É uma daquelas iniciativas que aquecem a rotina e criam laços inesperados entre colegas que, fora dali, talvez só trocassem um “bom dia” apressado no corredor. Para o próximo encontro, o livro escolhido foi ‘O Livreiro de Cabul’, da jornalista norueguesa Åsne Seierstad.
Comecei a leitura com curiosidade, movida pela promessa de mergulhar em uma cultura tão distante da minha, e, logo nos primeiros capítulos, fui atravessada por um sentimento incômodo: espanto. Espanto com a brutalidade do regime Talibã, com a maneira como as mulheres são tratadas, com a vigilância constante, o silenciamento, a violência travestida de religiosidade e honra familiar.
É impossível não se abalar com os relatos. Mulheres proibidas de estudar, de trabalhar, de sair às ruas desacompanhadas. Meninas prometidas em casamento com homens que poderiam ser seus avôs. Mães anuladas, filhas invisíveis, irmãs reduzidas a moeda de troca.
Alguém pode argumentar que, no Ocidente, não há nada que se compare ao Talibã. Que aqui as mulheres podem votar, estudar, trabalhar, dirigir, falar. E sim, é verdade que há conquistas importantes. Mas eu me pego observando, cada vez com mais clareza, os paralelos sutis entre o extremismo afegão e o avanço da extrema direita no mundo, inclusive no Brasil.
Quando vejo líderes políticos pregando o “lugar da mulher” como sendo o lar, descredibilizando denúncias de assédio, incentivando o armamento, atacando direitos sexuais e reprodutivos, tentando censurar livros e perseguir professores, me pergunto: até que ponto estamos realmente tão distantes? Quando juízes interpretam leis com base em convicções religiosas, quando o corpo da mulher volta a ser assunto público, o que exatamente estamos testemunhando?
A repressão por aqui talvez venha de terno e gravata, com frases de efeito em redes sociais e discursos moralistas em palanques, mas, ainda assim, é repressão. É controle. É medo. É ódio travestido de tradição, é violência disfarçada de valor familiar.
Ler ‘O Livreiro de Cabul’ é, portanto, mais do que visitar uma realidade alheia. É também um espelho incômodo. Porque nos mostra onde podemos chegar se cruzarmos os braços. Porque nos alerta sobre o que está em jogo quando a liberdade vira alvo. E porque nos lembra que nenhuma opressão começa com uma bomba. Ela começa com uma ideia que ganha aplausos, depois votos, depois armas.
Nosso clube de leitura talvez não resolva tudo isso. Mas é um começo. Porque ler, pensar e discutir também é um ato político. E, mais do que nunca, precisamos resistir com ideias.
