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Macho é macho toda hora, até com as calças borradas

Natanael era um sujeito nervoso. Não nervosinho, de dar chilique; nervoso, ansioso pra dedéu. Ficava tenso em situações corriqueiras, do tipo “será que vai chover? Não tem uma nuvem no céu, mas nunca se sabe…” Quando tinha um jogo do seu Flamengo contra um rival poderoso, então, chegava a suar frio.

Ele fora assim a vida inteira. Quando pediu sua futura esposa em namoro, gaguejava, não sabia onde enfiar as mãos de tanto nervosismo, quase se borrou nas calças. A coisa perigava dar chabu, desandar, até que ela salvou a situação, beijando-o nos lábios. Na empresa onde trabalhou a vida inteira, quando se atrevia a pedir uma promoção, a mesma ansiedade, o mesmo sofrimento, imaginando rejeições cruéis, zombarias e demissões, até o chefe responder, com um sorriso:

– Sim, claro, é mais do que justo. Você merece, Natanael.

Para dominar os nervos, ele recorria a pastilhas vendidas sem receita em farmácias e a poderosas mezinhas feitas por suas tias, descritas como tiro e queda contra a ansiedade. Nada funcionava, ele era nervoso e ponto.

Natanael teve algum consolo quando estava lendo o monumental romance Em busca do tempo perdido, do francês Marcel Proust. A páginas tantas do volume 3, O caminho de Guermantes, deparou-se com estas palavras, que um médico dirige à avó enferma do romancista:

– Suporte que a considerem uma nervosa. A senhora pertence a essa família magnífica e lamentável que é o sal da terra. Tudo o que conhecemos de grande nos vem dos nervosos. Foram eles e não outros que fundaram as religiões e compuseram as obras-primas.

Natanael sentiu um certo alívio ao saber-se um membro ilustre dessa família magnífica, no dizer do personagem de Proust, mas a sensação de bem-estar logo desapareceu, Afinal, não pretendia criar religião alguma (era ateu, dizia-se agnóstico para não escandalizar em demasia os tementes a Deus) e não tinha um pingo de criatividade para escrever, pintar ou compor algo aceitável, quanto mais uma obra-prima.

Certo dia, recordou um trecho de um fox-trot lançado em 1954 pelo grupo Os Cariocas: “Mas que nervoso estou/Sou neurastênico/Preciso me tratar/Senão, eu vou pra Jacarepaguá”. Aquilo o convenceu, decidiu buscar tratamento médico.

A decisão não veio por considerar que o talento literário e musical de Netinho e Nazareno de Brito, compositores do fox-trot, se equiparava ao de Marcel Proust; e nem pelo temor de ser levado para a Colônia de Alienados Juliano Moreira, em Jacarepaguá, inaugurada nos anos 1920 e que, com o tempo, trocou a internação compulsória e a brutalidade nos cuidados aos residentes pela desinstitucionalização dos pacientes psiquiátricos, dentro das concepções do movimento antimanicomial. O que aconteceu foi que, com a idade, o nervosismo assumiu outras manifestações físicas além do gaguejar, do torcer as mãos e do suar frio.

Certo dia, depois de uma vitória sofrida do Mengão em um Fla-Flu, Natanael, ao despir-se para tomar banho, percebeu uma mancha escura e malcheirosa na cueca que usava. Só de pensar que perigava fazer nas calças, em plena rua, borrou-se ali mesmo, no banheiro. Foi a gota d’água (não, nem gota, nem de água, mas vocês compreenderam). Depois do banho, enxugou o corpo, vestiu-se e pesquisou o endereço do consultório de um especialista no tratamento dos nervos.

O médico prescreveu-lhe um tratamento heterodoxo, que mesclava os velhos e maus choques elétricos a muita meditação, exercícios físicos e mudanças radicais na dieta, além de ansiolíticos. Natanael seguiu-o à risca. E a vida seguiu.

Meses depois, um amigo o viu junto a um muro, do outro lado da rua, fumando, distraído. Ia atravessar para cumprimentá-lo, quando dois automóveis colidiram a poucos metros. Acidente pavoroso, com vários feridos graves. O amigo levou um baita susto, mas Natanael nem tchuns, continuou junto ao muro, fumando, com a mesma expressão na fisionomia.

O amigo aproximou-se dele.

– Natanael, que bom que seu tratamento pros nervos funcionou. Dei um pulo e quase morri do coração ao ver o acidente, mas você continuou onde estava, tranquilão…

Natanael sorriu e respondeu:

– É amigo, funcionou sim. Mudei, estou melhor, bem tranquilo…

Interrompeu-se e apontou para uma grande mancha escura, que crescia, reveladora, no fundo de suas calças:

– … mas todo borrado!

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