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Minha amiga Sarah que o diga

Viver é muito perigoso, e pensar que se domina uma língua estrangeira, por mais familiar que ela seja, também é. Minha amiga Sarah que o diga.

Sarah é argentina. Nasceu em Buenos Aires mas morou muito tempo no Brasil. Na verdade, sambou/tangueou entre os dois países em diversos momentos de sua vida. O troca-troca pátrio foi limando suas arestas, sem ajudar a construir uma identidade facilmente reconhecível, merecedora de frases como “Só podia ser argentina!” ou “Só podia ser brasileira!”. O gosto musical, por exemplo. Sarah gosta de samba e de zamba, de carnaval e de carnavalito, e alguns de seus amigos brazucas também aprenderam a gostar. Idem quanto ao vocabulário. Ela pode estar hablando com um compatriota, e de repente solta um “pra dedéu”, que não há portenho que entenda…

Com os materiais brasileiros e argentinos a seu dispor, la muchacha foi laboriosamente construindo uma persona gótica. Nada de cruzes na montagem, que ela é judia, e ainda menos de piercings. Um gótico light, digamos. Sua pele muito branca oferecia um belo contraste com os cabelos negros, os vestidos e a maquiagem de tons escuros que costumava usar. O efeito era impressionante nas quentes noites do Rio, e ainda melhor nas noites amenas de suas temporadas argentinas. E foi numa delas que ocorreu o episódio contado por ela e transcrito aqui por mim.

Vestida de negro e com maquiagem da mesma cor, Sarah caminhava por uma rua de Buenos Aires, já de madrugada. Caminhava não: manquitolava, pois havia quebrado o salto de um dos sapatos. Não passava um só táxi, e de qualquer modo estava sem dinheiro para um. Por outro lado, tinha seu cartão de crédito. De repente, viu uma garagem aberta com um cartaz identificador: Cochería.

“Bueno, vou alugar un coche con mi tarjeta e chegar na casa dos meus tios em grande estilo”, pensou em portunhol, seu dialeto habitual. Para limá-lo, ela tendia a falar muito, dando mais informações do que o necessário (talvez o temperamento brasileiro, mais caloroso, tivesse uma pitada de influência nisso). De qualquer modo, foi manquitolando até uma sala envidraçada onde um homem cochilava e o acordou, dizendo que gostaria de alugar um veículo.

-Buenas noches, me gustaría alquilar un coche.

O homem a mirou de boca aberta e olhos esbugalhados, sem dizer uma palavra.

Procurando ser simpática, Sarah pediu um cartão da firma e perguntou se os amigos que se interessassem pelo serviço poderiam procurá-lo.

– Podría darme un tarjeta de la oficina? Tengo muchos amigos que podrían utilizar el servicio. Ellos pueden visitarlo?

Foi a gota d’água. O empregado explodiu:

– Hembra del diablo, volvé al infierno de donde saliste! – e fugiu correndo da garagem.

Sem entender nada, ofendida – era a primeira vez que a chamavam de “fêmea do diabo” –, Sarah deixou a garagem, continuou a manquitolar por Buenos Aires e finalmente conseguiu um táxi, que aceitou o pagamento no cartão de crédito e a conduziu à casa dos tios.

No dia seguinte, curiosa, ela decidiu procurar cochería num pesado dicionário espanhol (isso ocorreu nos maus e velhos dias pré-google). Só então entendeu o pavor do cara. No dicionário constava algo assim:

Cochería – voz argentina para designar la empresa que se encarga del velorio y acondicionamento para el enterro de los difuntos.

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