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Muitas flores para Dona Rosita

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“Procuro sol, porque sou bicho de corpo.
Sombra terei depois, a mais fria.”
Adélia Prado

Dona Rosita, aliás, Rosa Maria Menezes Albuquerque Felício ficara viúva após os intensos e inesquecíveis anos vividos miudinho com seu marido numa pequena cidade do interior desse mundo de Deus. Anos tão bem vividos – pelas regras de Deus e dos homens – que lhe garantiram a alegria perene de ter ali plantada uma família. Como poema desabrochado em gentes. Tinha guardadas na memória as honrosas benesses desse casamento feliz que só. No cotidiano da vidinha que agora imperava seguir, a de mandar as tristezas embora, contava com riqueza maior: as sete filhas frutificadas de tanto amor reunido. Uma escadinha de mulheres queridas a impulsionar o viver com maiores graças e de onde brotariam os netos mais que almejados: meninos e meninas a cirandar alegrias no valsear dos tempos. Contava com esse afeto merecido para prosseguir.

O que Dona Rosita talvez não soubesse de pura razão revelada, a menos que pudéssemos averiguar o íntimo da sua intuição feminina dos seus quase setenta e sete anos de desvelamentos é que fora sempre admirada em olhares silenciosos, em palavras esparsas de amizades conterrâneas ou em rodeios e floreados pelo Seu Olegário Paranhos da Silveira Munhoz, amigo fiel de seu falecido marido. Desde os bancos escolares até os negócios financeiros que bem correram.

Pois é. Desde a viuvez instalada, Seu Olegário, num rasgo de liberdade e sonho, resolvera deixar aflorar seus interesses recônditos, enraizados de amorosidades agora justificados em liberdade e direito. Inquieta, entristecida pela ausência do companheiro de tantas estações e ventos, ela não aprendera a decifrar o que havia nas entrelinhas daqueles paparicos e galanteios que agora se intensificavam feito ondas procurando praia, se ramificavam feito primaveras por sobre os muros. Escancaravam-se feito coração exposto.

Nesses anos de desprendimentos e solidão desgarrada, Dona Rosita não tivera a aprendizagem em lidar com a ventura de novo afeto.

Numa dessas tardes em que a conversa ondeava entre ela e o compadre Olegário, uma perguntinha desprendeu-se do fio costumeiro e vislumbrou-se o que estaria escondidinho feito caroço de fruta:

-É, Rosita, você está sem namorado? Esta história de viuvez já está durando muito, você não acha não?

Dona Rosa Maria saiu do prumo. Avermelhou-se com ira divina. Botou sua indignação para fora feito rojão de quermesse de padroeiro dizendo aos quatro ventos que aquilo não era coisa de se falar… Ainda mais ele, amigo de tantos tempos! Que ela merecia respeito, que era uma mulher viúva, que não era dessas coisas…

Pode-se imaginar as tantas outras frases emboladas e emaranhadas que foi dizendo com veemência e firmeza a ponto de ficarem claríssimas as intenções do compadre, agora pretendente a noivo. Bem como da não disposição da então pretendente de fazer do antigo sonho a boa realidade.

Fora tudo por água abaixo. Nem namoro, nem amizade. Nem paparicos, nem lisonjerias. Não mais. O fato é que o Seu Olegário, como diz o outro, “enfiou sua viola no saco”, deu o maior “chá de sumiço”, escafedeu-se. Só ficara Dona Rosa Maria e sua extremada solidão.

E os dias foram assim em correntezas. Nuvens passeavam no azul. O varrer a casa, o molhar as plantas e aquele deserto doído ficando mais que a tristeza maior. Em dezembro, o armar árvore e presépio com delicadezas fora chocho. Nem a televisão, tagarela e profusa de imagens e cores, trazia alguma cor de alma ou algum pulsar de vida como ela queria. Num desses últimos dias do verão chegando, desliga a tevê, olha o relógio e a folhinha na parede: sábado, seis horas da tarde. Um vestido mais alegre, florido, sai do armário devagar a ocupar sua função. Mais os sapatos escuros, um colarzinho de contas, um borrifo generoso de colônia leve nos pulsos e atrás das orelhas. O espelho parecia gostar daquela boa arrumação. Afinal uma mulher com tanta existência esmerada, dona de seu nariz e mais alguma coisa poderia saborear um bom quitute com o seu compadre fugido em algum lugar de bons serviços. Que mal havia?

Foi o que tramou, contrariando aquela solidãozinha que teimava morar em seu quarto. Em poucos tempos, seus passos certeiros estavam à porta do Seu Olegário, o escorraçado pela dignidade monumental de Dona Rosa Maria, ela mesma. Nem entrou de firmeza. Ficou à espera do convidado aparecer com olhos mesclados de júbilo e orgulho ferido. Mal ele se pôs à frente foi dizendo em voz mansa e séria se o compadre não queria ir com ela no Bar da Praça saborear algum petisco e conversar um pouco. A resposta veio como relâmpago que rasga a tempestade dos corações:

– Já jantei!

Na certa era um viril ‘não’ disfarçando promessas de ‘sins’. Feito boneca de pano abandonada no melhor da brincadeira, virou-lhe as costas mansamente e foi direto ao bar. O lanche de pernil saboroso e a longa Coca-Cola esvaziavam solidões e lembranças. E borbulhavam promessas de amanhãs. Ele ficara com as florinhas miúdas latejando na retina arrependida.

Quase uma hora depois, jantada e ainda solitária, Dona Rosita assiste da mesa polvilhada de migalhas à camionete parada por um instante na praça em frente ao bar. Recebe em rápido aceno do seu renegado convidado e mais alguma satisfação:

– Tô indo para a igreja!

A missa das sete ficara sem a presença de Dona Rosita naquele sábado. Voltara para casa olhando pausado os jardinzinhos das frentes das casas a doarem suas cores aos olhos interessados. E um pouco mais conformada com aquela inquieta solitude.

Numa tarde mais encalorada, quando menos se esperava entregam à porta de Dona Rosita a mando de Seu Olegário, sem bilhete e, sem recado, um saco de milho verde, uma gorda abóbora e ainda uma galinha sadia amarrada aos pés. Que falavam estes presentes? Arrependimento? Desculpas? Querências?

Em poucos dias e como bem sabia Dona Rosita, do milho fez deliciosas pamonhas envolvidas na palha, mais curau e bolo. E doce de abóbora com coco. Mais a galinhada de fazer babar qualquer um.

Todas as suas filhas, só elas foram as convidadas para aquele banquetinho especial. Talvez resposta silenciosas para aquele estranho diálogo amoroso. Elas, as sete filhas, vieram. Trouxeram muitas flores, das muitas cores para enfeitar aquela nova festa quase natalina. Sentiram os sabores dos preparados e tiveram boas conversas de memórias novinhas em folha.

Enquanto isso era a vez do destino se encarregar de alimentar seus personagens vivos para continuar a linda história de amor que mal estava a alinhavar-se.

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O conto MUITAS FLORES PARA DONA ROSITA, de Antonio Gil Neto, é um dos oito contos selecionados na V edição do Prêmio Arte e Literatura 2025, realizado pelo Programa USP60+ da Pró -Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP.
Além dos contos, foram selecionados outras obras de diferentes categorias de Arte. Todos os selecionados no referido concurso fazem parte de uma exposição no Centro Maria Antonia, na rua Maria Antonia, 294, 2º. andar , Sala1, Vila Buarque, em São Paulo/ SP. A exposição estará aberta ao público até o dia 08/fevereiro de 2026.

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