Cidade de Porto Alegre, dezoito horas e cinco minutos.
Lucas Simão estava sentado em um banco à beira do rio Guaíba.
Rodando em círculos na sua cabeça, versos da belíssima canção escrita pela dupla Milton-Caetano, que ele “ouvia” na voz de Gal…
Qualquer maneira de amor vale à pena
Qualquer maneira de amor vale amar…
Pena, que pena, que coisa bonita, diga
Qual a palavra que nunca foi dita, diga.
Qualquer maneira de amor vale o canto
Qualquer maneira me vale cantar
Qualquer maneira de amor vale aquela
Qualquer maneira de amor valerá
Todos os dias da semana, ele repetia o ritual: entrava na cafeteria, tomava um demorado café e, depois, caminhava até o banco que ficava em frente, a fim de contemplar o belo cenário que o rio oferecia.
Absorto, ele apreciava o mais lindo pôr do sol do país, degustando com os olhos a linda linha do horizonte que, como um balé em câmera lenta, se exibia graciosamente aos transeuntes.
Os pensamentos de Lucas entravam em ebulição durante o longo período de contemplação, alimentados pelos quase intermináveis diálogos com Anna Teresa.
Lucas lembrou do dia em que, há três anos, ele e Anna haviam se conhecido pessoalmente. Aconteceu em um seminário nacional sobre políticas mundiais de preservação ambiental promovido por uma importante ONG em Porto Alegre.
Por coincidência [ ou não?], sentaram-se lado a lado, começaram a conversar sobre os assuntos das palestras, trocaram algumas informações sobre as respectivas atividades profissionais e, logo após o término do evento, estavam tomando um café na mesma cafeteria que agora ele revisitava todos os dias.
Foram três horas que valeram por três dias de conversa e que formataram a sua vida sentimental nos três anos seguintes que, por sinal, pareceram passar voando.
Os dois se esqueceram completamente do relógio, enquanto, encantados, descobriam mais e mais afinidades e interesses comuns, como a paixão pela sétima arte, o amor pela literatura, o frisson pela boa música, mesmos ídolos artísticos, histórias de vida semelhantes, empatias e visões de mundo idênticas, sensibilidades entrelaçadas e, entre outras coisas, o mesmíssimo senso de refinado humor.
Ele, morou em Porto Alegre desde sempre, ela, também porto-alegrense, residia em São Paulo há vinte anos. Ela, jornalista, crítica literária e escritora, ele, historiador, funcionário público e professor. Ambos geração x, alto nível cultural, cinéfilos apaixonados, leitores contumazes, ativistas políticos convictos, defensores intransigentes dos direitos das minorias e militantes comprometidos com as causas progressistas.
Durante aquela animadíssima primeira conversa, ele lembrava bem que, apesar de Anna Teresa ter deixado claro que era comprometida, ambos não quiseram se aprofundar naquela questão.
Concentradíssimos, ingressaram com naturalidade em um vasto leque de assuntos que passavam pela posição da dupla Grenal no campeonato brasileiro, a atual situação política do país e ia até o impacto da Inteligência Artificial no mercado de trabalho e no mapa do poder político mundial.
Depois do longo bate papo, degustação de quitutes e alguns cafés, aconteceu o que nenhum deles desejava, porém, inevitável se fez:
-Puxa, já é tarde…está na minha hora, meu avião não demora para decolar, disse Anna.
-Bah, o tempo passou voando, não é mesmo? lamentou, Lucas.
-Pois é, passou mesmo!
-Será que poderíamos trocar contatos? arriscou, timidamente, Lucas.
-Claro…porque não? aquiesceu, Anna.
Depois de se despedir de Anna Teresa, Lucas parecia ter perdido o prumo e não lembrava mais o que tinha para fazer no dia seguinte.
Após uma impactante desilusão amorosa ocorrida há quinze anos, ele tinha optado resolutamente por uma solitude que, eventualmente, era intercalada por relacionamentos efêmeros e superficiais.
Agora, em apenas três horas, Anna Teresa acabara de abalar a sua certeza particular [duramente construída] de que almas gêmeas eram um mito alimentado pelos poetas de todas as épocas e pelo romantismo literário dos romancistas do século XIX.
E, para complementar com louvor essa nova incerteza na sua convicção existencial, Anna tinha o brilho intelectual, o encanto dominante e a beleza singular de Alessandra, só que tudo com mais maturidade e sensibilidade.
Confuso, Lucas tentou se recompor como podia. Balançando negativamente a cabeça, disse para si mesmo:
-Ora, o que estou pensando? Nessa altura da vida, isso é uma imensa bobeira da minha parte…ela só quis ser gentil comigo e, além do mais, ela já tem alguém.
No entanto, no dia seguinte, decidiu enviar uma mensagem para a nova amiga, pois não conseguia parar de pensar nela, sua inteligência perceptiva, cultura refinadíssima, magnífico senso de humor e, especialmente, nas incríveis afinidades que haviam naturalmente se revelado entre os dois.
Para a sua agradável surpresa, Anna respondeu imediatamente e engataram uma conversa digital que durou uma hora seguida, só sendo interrompida porque os dois precisavam voltar ao trabalho após o horário do almoço.
Passaram a se falar via WhatsAap ou por e-mail todos os dias. Como por mágica, os assuntos nunca se esgotavam, ampliando ainda mais o longo arco da primeira conversa, agregando agora as questões filosóficas, culturais e coletivas já discutidas no primeiro encontro, trocas cada vez mais existenciais e pessoais.
O fato é que, simplesmente, ele já não conseguia fazer mais nada sem antes falar virtualmente com Anna Teresa. As conversas geralmente começavam na primeira hora da manhã, oscilavam esporadicamente durante o dia e, em regra, recrudesciam à noite até a batida do relógio sinalizar o fim das vinte e quatro horas do dia.
Sempre havia coisas novas e importantes a serem contadas e ouvidas por ambos, incluindo planos de ambos a curto, médio e longo prazo. Com o tempo, códigos foram estabelecidos e um sabia precisamente quando o outro estava alegre e animado ou melancólico e chateado, sendo a conversa, nesse último caso, um precioso tônico para espantar os desassossegos da alma daquele que no dia estava tristonho.
Todavia, seria inevitável que, em meio a esse enlevo que lhe iluminava o espírito e enchia o seu coração de alegria, necessariamente haveria de existir uma aflição para lhe alugar a mente. E, sobre isso, Lucas precisava conversar com alguém que não fosse Anna Teresa. Recorreu então a um velho amigo que possuía tirocínio de filósofo e vocação para guru.
-Então, Ricardo, esse é o X da questão: embora atualmente seja vital para a minha vida, eu não sei bem como definir a minha relação com a Anna: amor platônico, amizade colorida virtual, crush à distância, amizade cósmica?? Nada disso me parece suficientemente preciso para definir o que existe entre ela e eu…e confesso que isso me angustia.
-Meu amigo Lucas, acho que você arrumou uma bela enrascada para si mesmo…falou o amigo, perplexo com o que Lucas lhe relatara em detalhes.
-Pois é…e nem sei se ela também sente ou pensa nisso da mesma forma que eu! É possível que uma mulher tão extraordinária como ela tenha outros amigos, até mais interessantes do que eu e com essa mesma vibe interativa entre eles. E o mais importante, ela tem um casamento de mais de vinte anos que parece ser muito harmônico.
-Hum…pelo que você me falou, não creio que você seja apenas mais nome na agenda da Anna. Mas você nunca tentou abordar essa questão diretamente com ela para saber o que ela pensa?
-Sim, até já tentei arranhar o tema, mas ela sempre foge habilidosamente do assunto, colocando a palavra amizade como um mantra de defesa impenetrável…e aí, não insisto mais, porque sei que poderia dar em uma coisa não muito boa.
-Então, meu caro, você está navegando nas águas de um paradoxo que possui a profundidade do rio Guaíba! Pelo que me contaste, acho que ela claramente tem fortes sentimentos por você, mas ao mesmo tempo, não quer ser desleal nem em pensamento com o companheiro dela.. e nem te dar falsas esperanças de que a relação de vocês dois possa se aprofundar ainda mais.
-Paradoxo! Sim, eu e ela usamos muito essa palavra que define bem um dos maiores ídolos literários que temos em comum: Fernando Pessoa!
-Sei, mas então você não acha que, apesar do enlevo e da satisfação que a relação de vocês te traz, tudo isso possa estar atrapalhando a tua vida?
-Como assim, atrapalhando a minha vida? Protestou Lucas, complementando, convicto:
-Ao contrário, eu nunca me senti tão energizado, tão antenado, tão especial e de certo modo, tão empoderado desde que, como você sabe, Alessandra e eu terminamos.
-Entendi! Não me leve a mal, amigo, mas isso foi uma provocação da minha parte para te testar! Olha, o que tenho a te dizer é o seguinte: existem caminhos que só aparecem depois do primeiro passo…e vocês dois tem algo muito raro, não deixe que as impossibilidades que a vida colocou entre vocês estrague algo tão especial.
Após relembrar a síntese da sua história com Anna e todas as suas belezas e indefinições, Lucas voltou a olhar a hora e acessar o whats para ver se havia alguma mensagem. Anna e ele tinham combinado de se reverem na mesma cafeteria do único e inesquecível encontro que tiveram há três anos.
Chegou o grande dia!
Era uma sexta-feira, mas ele frequentara o lugar desde a segunda, intercalando lembranças e projetando possíveis desdobramentos do próximo diálogo presencial que teria com a sua querida “mais do que amiga”.
Finalmente, do banco onde estava sentado, Lucas, com o coração em disparada, vislumbrou Anna descendo de um táxi e depois entrando na cafeteria. No minuto seguinte, ele recebeu a tão esperada mensagem:
-Lucas, estou aqui! Você já chegou?
Imediatamente, ele respondeu com a mão tremelicando:
-Chegando em dois minutos, Anna!
Os dois se olharam demoradamente antes de um longo e carinhoso abraço, enquanto lágrimas escorriam pelos seus rostos.
Sentaram-se à mesma mesa de antes e Lucas iniciou a conversa:
-Minha querida, tu estás muito bem! Estou em dúvida se o tempo demorou demais para passar ou se ele voou desde o nosso primeiro encontro.
-Meu querido Lucas, eu também não sei o que afirmar sobre isso…mas vejo que também estás muito bem!
-Então, viajas hoje com o teu companheiro para o Chile, não?
-Sim, partimos daqui a duas horas e ficaremos dez dias por lá.
-Muito legal! Gostas de neve, não é mesmo?
-Sim, gosto, só espero não escorregar como da última vez em que estive na estação de esqui, riu, Anna.
Durante meia hora, conversaram e riram sobre os últimos assuntos que tinham comentado pelo aplicativo, até que Anna falou:
-Lucas, preciso ir, o táxi já está ai na frente à minha espera.
Após um silêncio significativo entre eles, Lucas se encheu de coragem e fez a pergunta tão preparada durante todos aqueles dias de contemplação:
-Anna, tu tens mesmo certeza que queres ir?
-Meu querido, tu sabes que isso vai além de eu querer ou não…eu devo ir!
-Entendo…mas saiba que, mesmo assim, eu te escolheria em outras mil vidas!
-Eu sei, eu também…e nós sempre teremos Paris, sorriu ela ternamente, referindo-se a uma brincadeira que eles costumavam fazer com o final de “Casablanca”!
Após uma troca de olhares que falou mil palavras em alguns segundos, os dois se despediram com outro demorado e carinhoso abraço.
Depois da partida de Anna, Lucas sentou no banco em frente ao rio e novamente permaneceu reflexivo, remoendo todos os pensamentos e emoções que dançavam na sua mente e no seu coração.
-Serão esses os sentidos maiores da existência…e também do amor? A renúncia ao que mais desejamos e a superação estoica dos desejos egoístas? Talvez, mas agora que eu conheço Paris, vou continuar a lutar com todas as minhas forças por ela. De resto… só sei que nada sei!
Acalentando esse pensamento, Lucas deu um longo suspiro. Ao longe, um barquinho adornava a linha do horizonte.
