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Não é a ideia de Deus que me assusta, é a certeza de alguns sobre quem Ele vai salvar

Não é a ideia de Deus que me assusta, é a certeza de alguns sobre quem Ele vai salvar.

Vivemos tempos em que a fé deixou de ser abrigo para se tornar arma. Em que o sagrado se transformou em instrumento de poder, e o nome de Deus, pronunciado em vão, serve mais para separar do que para unir. A fé, que um dia foi refúgio e resistência, agora é bandeira de disputa moral.

Não há nada mais perigoso do que a convicção cega. A certeza é confortável, mas também é violenta. Porque quando alguém se julga dono da verdade divina, já não vê pessoas, vê inimigos. E é nesse momento que o amor, que deveria ser fundamento de tudo, se perde em discursos, julgamentos e exclusões.

Nós, como sociedade, construímos muros em torno daquilo que deveríamos compartilhar.

Inventamos um Deus à nossa imagem: vaidoso, seletivo, vingativo, que escolhe alguns e descarta outros. E nesse processo, esquecemos o essencial o divino que habita o simples, o humano que existe no outro, mesmo no diferente, mesmo no que erra, mesmo no que não crê da mesma forma.

Há quem encontre prazer em apontar pecadores. Há quem se sinta mais puro ao condenar. É mais fácil julgar do que compreender; mais fácil erguer a voz do que estender a mão.

Mas o que seria da fé se ela não fosse também dúvida? O que seria da religião se não houvesse humildade diante do mistério?

O que me assusta não é Deus é a arrogância com que muitos falam em nome d’Ele.

É o tom de voz que acusa, a segurança com que definem quem merece o céu, quem está fora, quem “não presta”.

E o mais irônico é que essa necessidade de separar é, justamente, o oposto do que se prega. Porque a fé verdadeira não divide reconcilia.

Vivemos cercados por discursos de pureza, mas o mundo continua impuro.

Há fome, há desigualdade, há violência e nenhum sermão resolve o que a compaixão calada poderia transformar.

Enquanto uns discutem quem vai ser salvo, outros morrem sem sequer serem vistos. E talvez o maior pecado do nosso tempo não seja a falta de fé, mas o excesso de certeza.

Deus, se é que ainda conseguimos pronunciá-Lo com reverência, não cabe nas nossas gavetas de dogma.

Ele não é propriedade privada, nem moeda de barganha.

Ele é presença no gesto, no cuidado, no silêncio, na escuta. Está menos nas pregações inflamadas e mais na mão que acolhe quem ninguém mais quer.

E talvez seja isso que o realismo esperançoso tenta lembrar: que o divino não é um prêmio, é uma relação.

Que a salvação, se existir, não é troféu de pureza, mas consequência de amor.

E que, no fim, quem mais fala em nome de Deus é muitas vezes quem menos O reconhece no rosto do outro.

Não é a ideia de Deus que me assusta é o que nós, coletivamente, fizemos com Ela.

Transformamos a esperança em medo, o amor em controle, a comunhão em hierarquia.

Mas, entre tantos ruídos, ainda há quem compreenda o sagrado sem gritar: no olhar compassivo, no gesto discreto, na empatia que não precisa ser pregada para ser vivida.

E é nesse pequeno respiro nesse instante em que escolhemos compreender antes de condenar que talvez Deus ainda more, silencioso, entre nós.

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