Notibras

Não era pesadelo, mas um lindo sonho grandioso

Acordou no meio da madrugada em sobressalto. Estava tendo um sonho. Mas não era um pesadelo, ao contrário, era um lindo sonho. Era um sonho grandioso. Mas se sentia confuso, sem saber se ainda estava sonhando ou se já tinha voltado à realidade. Lembrava-se de cada detalhe. Alcançou um copo d’água à cabeceira, tomou alguns goles para se acalmar e por fim constatou estar acordado. Mas seu sentimento de urgência não desvanecia, movia-se devagar para não deixar que seus pensamentos se dispersassem. O sonho, por incrível que fosse, no fundo lhe parecia possível. Lançou mão de seu laptop e começou a escrever freneticamente ponto por ponto.

Era um deus, não sabia se maior do que Apolo e todos os outros deuses do Olimpo. Se era mais importante do que Iris e Osisris, Shiva, Brahma ou Vishnu, Odin, Alah, YHWH, o judeu e cristão. Se era mais elevado do que o próprio Buda e até mesmo se era o único “Deus” verdadeiro, talvez fosse, e senhor de tudo entre todas as mitologias. As únicas certezas, não era o Deus de Spinoza e conhecia seu poder.

Olhava de cima o mundo, enxergava toda fome, miséria, injustiça, trabalho escravo ou análogo à escravidão, a destruição da natureza e a crise climática, as guerras e a ameaça nuclear e as incontáveis tragédias humanas; e pensavam consigo (as três pessoas):

– De que adianta afinal, ser onipotente, onipresente e onisciente, se esses humanos, desde que comeram o fruto, só fazem bobagens com seu livre arbítrio? E nessas centenas de milhares de anos que habitam essa terra chamada Terra, nos parece, vão de mal a pior?

Deus então, cansado de esperar pela realização de seu grande sonho de ver a humanidade evoluindo de verdade, não somente de forma material, com suas grandes descobertas, invenções e criações, com os avanços científico e tecnológico; mas de forma espiritual. Que valores, como a solidariedade e o sentimento de comunhão entre todos, prevalecessem e a convicção de que nada adiantaria uns poucos usufruírem de tudo e a grande maioria viver na mais absoluta miséria, com fome, medo das guerras, desnutrição infantil, catástrofes etc., teve uma ideia brilhante (em consenso entre as três pessoas): façamos o seguinte:

– Apenas por um momento, suspendamos provisoriamente o livre arbítrio dessa gente, e ordenemos a cada cidadão que habita desde o poderoso império, até o país mais humilde e simplório do mundo, tipo o Haiti ou o Sudão do Sul, cuja renda per capta anual é de US$ 445,01 (quatrocentos e quarenta e cinco dólares estadunidenses e hum centavo) e convençamo-los de nos entregar todo o dinheiro e a riqueza pertencente a cada um.

Assim fez. E tão logo tenha conseguido centralizar em suas mãos todo aquele valor, cuja soma, já convertidos os bens materiais (carrões de luxo, mansões cinematográficas, jatinhos supersônicos, joias, iates, grandes empresas, indústrias de medicamentos, fabricas de automóveis movidos a combustíveis fósseis ou mesmo elétricos, fábricas de cigarro, vinhos e whiskys caríssimos, casas de apostas e cassinos, quadros e obras de arte diversas, todos os bancos, a Black Rock e suas congêneres, as big techs, emissoras de rádio e televisão, igrejas de todos os credos, mas também os valores mais modestos pertencentes ao mais pobrezinho dos habitantes do planeta e até os porquinhos de louça contendo os níqueis das crianças, tudo somava exatamente 10.472.837.341.972.243.798,45 € (dez quintilhões, quatrocentos e setenta e dois quatrilhões, oitocentos e trinta e sete trilhões, trezentos e quarenta e hum bilhões, novecentos e setenta e dois milhões, duzentos e quarenta e três mil, setecentos e noventa e oito euros e quarenta e cinco centavos), revogou o decreto divino, devolvendo o livre arbítrio a todos para dar-lhes mais uma chance de praticar o bem por sua própria iniciativa.

Assim, pela primeira vez, toda a humanidade, em termos financeiros, ficou exatamente na mesma condição. Alguns poderão alegar que a medida não tenha sido assim tão pioneira, pois Collor, no início de seu mandato, em 1990, já havia feito o mesmo quando lançou seu plano econômico homônimo, mas, lembremos, o Plano Collor valeu apenas no Brasil, agora estamos falando do mundo inteiro.

Mas rapidamente, para que ninguém passasse necessidade, foi instituído por meio de mais um decreto divino, o pagamento de um salário-mínimo (e máximo), com direito a três férias por ano, 13º e 14º salários, jornada semanal 4 X 3, vale refeição, vale transporte e tudo mais previsto na CLT (depois que a reforma do Temer foi revogada por meio de mais um decreto celeste), para todas as pessoas no valor de $ 843,00 BRICS, a nova moeda universal, cujo valor unitário corresponde a 10 dólares estadunidenses, equivalentes a R$ 46.365 (quarenta e seis mil, trezentos e sessenta e cinco reais), tendo como referência o teto salarial dos parlamentares e juízes federais do Brasil, proibidos os penduricalhos, pois estudos mostraram que com esse valor as pessoas têm condições de viver de forma razoavelmente digna.

Estabeleceu um valor único, pois, por um lado, concluiu que, independentemente da formação de cada um, esse negócio de meritocracia não tem lógica, pois as chances de progredir nesse mundo, nunca foram equânimes; e, por outro, todos os trabalhos, desde que honestos e abençoados pela autoridade divina, têm a mesma relevância, afinal, qual o profissional mais importante? A médica ou o lixeiro? O geólogo ou a professora? O pedreiro ou o engenheiro? O astronauta ou a cozinheira? O pizzaiolo ou a faxineira? A modista ou a costureira? O banqueiro (se é que isso é profissão?) ou a bancária?

Com o pagamento dessa remuneração para todas as pessoas e o investimento para corrigir todas as falhas dos serviços públicos saúde, segurança, educação etc. e incrementar toda a infraestrutura urbana com todas as benfeitorias necessárias ao conforto e à mobilidade de todos, ainda sobrou uma quantia bem razoável nos cofres divinos e foi implementado o orçamento participativo, com a consulta a toda a população em assembleia mundial sobre quais os novos investimentos mais úteis à sociedade a serem realizados.

A vida no planeta, se ainda não tinha atingido o nível do Paraíso Celeste, estava quase lá. As pessoas eram plenamente felizes e viviam em paz, sem ódio nas ruas e até nas redes sociais, nos grupos das tias somente circulavam mensagens positivas com desejos de “feliz dia!” ornadas com ursinhos, gatinhos, cachorrinhos, passarinhos e outros bichos fofinhos. A fome e as guerras foram extinguidas e a solidariedade e a empatia reinavam, todos passaram a contribuir para a restauração do meio ambiente…

Exatamente nesse ponto, o sonho foi interrompido, quando ele acordou agitado. Seria um final feliz, mas deixou uma sensação de inacabado… Assim, tão logo terminou de registrar os fatos oníricos, até ali, daquela noite inusitada, acomodou-se novamente para retomar o sono e tentar voltar aos devaneios dos quais fora subitamente retirado.

Poucos minutos depois já estava de volta ao cenário utópico, mas, logo ao chegar, pressentiu que as coisas já não andavam tão bem como antes. Aquela aura de congraçamento de antes não era mais tão “sólida”, transparecendo um clima de certa desconfiança entre os viventes, uns maldizendo outros pelos cantos, uma tristeza mal disfarçada estampada nos rostos, enfim, um ambiente no qual se notava a submissão de grandes parcelas a grupos pequenos. Na prática, havia por parte de alguns, a apropriação indébita de grandes valores dos salários de uma maioria que mês a mês deviam ser entregues a agiotas cruéis. Desconfiava-se serem os poderosos banqueiros que se reorganizavam para extorquir a população incauta, e já era notada uma certa carência em alguns rincões, dificuldade para pagar as contas e até privações relativas às necessidades básicas. Mas na verdade era muito mais do que isso, uma parcela relativamente numerosa, embora extremamente minoritária, já avançava no processo de exploração do trabalho alheio, retira do os direitos dos trabalhadores e pagando salários miseráveis, quando pagavam. Era o tal capitalismo, ressurgindo resiliente.

Diante desse lamentável retrocesso, Deus convocou, mais uma vez, o Conselho Superior, composto pelas três pessoas, para debater uma solução. Antes, porém, era preciso fazer o diagnóstico sobre os motivos de os humanos se enveredarem novamente para o lado da corrupção (ou cupção, como dizia um certo juiz proscrito), já pressentindo a necessidade da aplicação de um “remédio amargo”, como se diz. E assim foi. A conclusão a respeito da causa estava clara, o “dinheiro” era o grande responsável; e a medida a se adotar seria a aplicação do castigo supremo, a extinção da humanidade por meio de um dilúvio, para retomar a povoação da Terra do zero, ou melhor, quase zero, mas nessa nova sociedade o dinheiro seria proibido.

Deus procurou e achou, ao leste do continente africano, em um pequeno país chamado Burkina-Fazo, – onde, à semelhança de antes do decreto que suspendeu temporariamente o livre arbítrio, havia uma guerra civil instalada, governantes corruptos e tiranos eram derrubados e se sucediam, as tribos e as etnias lutavam entre si – em uma família oprimida de uma localidade afastada, uma mulher de seus trinta e poucos anos chamada Leó, chefe da casa, cuja generosidade e dedicação aos valores espirituais e aos ancestrais se destacavam, e determinou a ela que construísse uma arca de madeira com 300 côvados de comprimento, 50 côvados de largura e 30 côvados de altura.

Quando a embarcação estivesse pronta ela deveria levar somente sua família, o marido e os 18 filhas e filhos. Ir à floresta e pegar um casal de cada animal de cada espécie, entre mamíferos, aves peixes e até os insetos: vespa, formiga, aranha etc., colocá-los, todos, na arca e a partir daí Deus mandaria uma tormenta durante 40 dias e 40 noites, matando toda a vida animal sobre a Terra, restando apenas, sãos e salvos, os passageiros da nau. E assim se deu. No final do período, a arca encalhou em um monte chamado Ititira. Leó, então abriu a janela e soltou uma pomba que retornou com uma folha da árvore de Karité, comprovando que o Dilúvio finalmente havia terminado.

O despertador tocou, mas ele ainda estava envolvido com o sonho, precisava saber como a história terminaria. Desligou o relógio, e continuou dormindo e sonhando…

Leó, muito precavida, apesar das evidências, ainda assim para ter certeza, ordenou a seu marido, Olpiti:

– Saia, e dê uma volta pelo local e se certifique de que estavamos, mesmo, em segurança, para, finalmente, desembarcarmos e darmos início à tarefa designada por Deus, qual seja: repovoar a Terra.

Olpiti, um tanto desconfiado, mas consciente de que não poderia desobedecer a mulher, saiu e começou a caminhar pela região, incialmente cuidadoso, mas percebendo a tranquilidade reinante, cada vez mais descontraído, encheu os pulmões com o ar fresco do monte, observou a vegetação, o som do vento batendo suavemente nas folhas, o céu avermelhado e o sol que já se punha no ocidente e, de repente, notou algo estranho no chão, brilhando intensamente no lusco-fusco do dia. Olpiti, então, se aproximou cuidadosamente para observar melhor. Ora, se não era uma pequena moeda? O homenzinho, então, curioso, chegou ainda mais perto, para observar melhor e percebeu, semidesenterrado, um grande pedaço de metal, olhou para ambos os lados para se certificar de que ninguém o observava, esquecendo-se de que não havia mais ninguém no mundo, abaixou-se e rapidamente começou a cavar com as mãos, pois a terra estava pastosa e facilmente removível, como consequência da chuvarada. Aos poucos começou a surgir a tampa de um grande baú, e não havia sequer um cadeado para impedir sua violação. Ele então o abriu e qual não foi sua surpresa ao encontrar, dentro dele, uma fortuna em moedas. Olpiti então, pensou, falando alto, consigo mesmo, já que estava sozinho:

– Quando o planeta estiver novamente povoado, com a riqueza de dentro deste baú, serei o homem mais poderoso do mundo, pois poderei comprar o que e quem quiser. E as pessoas farão qualquer coisa para trocar por pelo menos um pouco de dinheiro. Mas, agora, vou enterrá-lo novamente, por enquanto é bom que ninguém saiba, nem mesmo Leó e meus filhos. Agora, ele já podia acordar, pois estava claro, a história iria se repetir mais uma vez. Ele havia perdido a hora de ir para o trabalho. Levantou-se apressado tomou um banho rápido, se vestiu, engoliu uma xícara de café e saiu correndo. Enquanto esperava esbaforido o ônibus, se deu conta de estar mal-humorado, meio deprimido, mas não sabia por quê? Na correria, havia esquecido o que se passara à noite, não se lembrava de mais nada. Ao final do dia, ao voltar para casa e ligar novamente o laptop, deu de cara com os registros feitos durante a madrugada.

Não entendeu nada. Achou tudo aquilo sem o menor sentido e resolveu apagar o arquivo.

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