Todos os domingos, no início da noite, Nereu chegava ao Edifício Martinelli. Cumprimentava o porteiro, que já o conhecia de longa data.
Entrava ansioso no elevador e saltava no 7º andar onde havia um salão de baile. Lá, todas as semanas, religiosamente, aconteciam as “domingueiras” a partir das 19 horas, terminando por volta da meia noite.
Além de exímio dançarino de todos os ritmos imagináveis: valsa, samba, rumba, forró, bolero e, até mesmo, tango, Nereu era uma dessas figuras populares, bom de conversa, simpático, bem-humorado, zombeteiro, comunicativo e amigo de todo mundo, além de ser uma pessoa muito generosa. Citar sua proverbial habilidade com as mulheres é quase uma redundância.
Sua chegada no recinto, com seu inefável terno de linho bege, camisa de seda preta, gravata italiana florida, sapato de verniz bicolor, cravo na lapela, brilhantina no cabelo e exageradamente perfumado a “Lancaster”, era aguardada sofregamente pelas moçoilas, dando a impressão de que a festa só começava a partir daquele momento.
As que não conseguiam pelo menos alguns passos com ele na noite voltavam para casa frustradas. Desnecessário dizer também que nunca saía, após a última música, sem ser acompanhado de uma delas para a inveja de todas as demais. Mas apesar de seu espírito boêmio, nunca se atrasava para o trabalho no dia seguinte.
Durante a semana trabalhava com afinco em um escritório de contabilidade, sempre pontual e correto na execução das funções que lhe cabiam. Estimado pelos colegas e pelo chefe. Mas isso era tudo o que se sabia sobre sua vida para além dos bailes dominicais. Sem dúvida, era o estereótipo do bom malandro. Cheio de vitalidade no auge dos seus 20 e poucos anos, isso lá pelo início da década de 1960.
Em um certo DOMINGO, entretanto, ao chegar no 7º andar do Martinelli, foi abordado pelo segurança que controlava a entrada do salão:
– Sua carteirinha?
– Carteirinha?
– Sim, sua carteirinha do Sindicato!
– Sindicato?
– Sim. O Senhor não é sócio do Sindicato?
Nereu, confuso, respondeu com naturalidade que não.
– Então o Senhor não pode entrar!
– Como assim? Faz anos que frequento esse baile todos os domingos e nunca fui barrado!
– Pois, a partir de agora, o Sr. somente poderá entrar se for sócio do Sindicato.
– Como eu faço para me tornar sócio do Sindicato?
– O Sr. é bancário?
– Não.
– Então o Sr. não pode se associar ao Sindicato.
Após desfiar todos os seus artifícios de convencimento, chegou à conclusão de que aquela noite estava definitivamente prejudicada. Havia “dançado” no sentido figurado, pois não poderia dançar no sentido literal (me desculpem as leitoras e os leitores pelo trocadilho) e, contrariado, resolveu voltar para casa.
Mas ele nunca foi de se dar por vencido. Na SEGUNDA-FEIRA levantou-se cedo, como sempre, e foi para o escritório. Porém, não para trabalhar, mas para pedir demissão. Superada a fase em que seu superior hierárquico tentou, sem sucesso, demovê-lo da ideia, pois o considerava um funcionário exemplar e acreditava ter um belo futuro na empresa, foi até o departamento de pessoal, para comunicar sua decisão e solicitar providências urgentes, renunciava ao aviso prévio e pedia a liberação imediata de sua carteira de trabalho, com a devida baixa, era uma emergência.
Tomadas as medidas iniciais, embarcou no primeiro bonde no bairro de Santana, onde ficava o escritório, e desembarcou no Largo de São Bento, ponto final da linha. Caminhando pelas ruas se deparou com o prédio onde funcionava o Banco Moreira Salles, na Praça do Patriarca. Na portaria foi identificado e encaminhado ao 5º andar, onde funcionava o departamento de seleção.
Lá preencheu uma ficha de emprego e o atendente o informou que, de acordo com as orientações da chefia da área, as inscrições eram aceitas até a sexta-feira de uma semana, para triagem e, se aprovadas, os candidatos seriam encaminhados para o teste e a entrevista na terça-feira da semana seguinte.
No entanto, Nereu tinha pressa e tentou convencê-lo a passar sua ficha para análise naquele mesmo dia, a fim de poder realizar as próximas etapas do processo já no dia seguinte. Como o atendente argumentava ser impossível, pois havia norma interna determinando o procedimento, usou toda seu arsenal de persuasão para convencê-lo a conversar com o gerente da área, para conseguir uma autorização especial. Não se sabe quais os argumentos utilizados, mas a autorização foi dada.
Na TERÇA-FEIRA, com 15 minutos de antecedência, ele era o primeiro da fila. Foi aprovado no teste e na entrevista, em seguida foi orientado para realização de exames médicos e chapa dos pulmões. Havia 15 candidatos além dele, sendo possível a realização dos exames em apenas 4 pessoas a cada dia, mas como havia sido o primeiro a fazer o teste e ter sido muito bem avaliado, foi encaminhado já na manhã seguinte à clínica conveniada.
Na ǪUARTA-FEIRA, passou praticamente o dia todo em uma “via-sacra” de consultórios: clínico geral, otorrinolaringologista, oftalmologista, ortopedista, dentista etc. e vários exames de laboratório. Os resultados deviam ser retirados em 24 horas.
Com os resultados dos exames médicos aprovados, a carteira profissional e todos os demais documentos solicitados, compareceu na ǪUINTA-FEIRA de volta ao departamento de pessoal do banco. O “dossiê” foi recepcionado e devidamente protocolado. Lá foi informado que os documentos iriam passar pela conferência do gerente e a resposta demoraria mais um dia.
Retornou ao banco na SEXTA-FEIRA e recebeu finalmente a notícia tão aguardada: estava tudo certo. Assinou o contrato de trabalho, Nereu, a partir daquele instante era um bancário. Carteira profissional em mãos com seu novo registro, correu à sede administrativa do Sindicato dos Bancários, na R. São Bento, 365, 15º andar, sala 1. Lá preencheu a ficha de filiação, entregou dois retratos 3 X 4 e sentou-se em um sofá na sala de espera, aguardando ansiosamente a confecção de sua carteirinha.
No SÁBADO, aproveitou o dia para conhecer, no mesmo prédio, a sala 2, oposta à sede administrativa, onde funcionava a parte social da entidade: salão de jogos, com duas mesas de pingue-pongue, pebolim, sinuca, xadrez, dama e carteado; um restaurante bandejão, café, a barbearia e um salão de beleza; e ficou admirado com o que viu.
DOMINGO, 7h da noite, terno de linho bege, camisa de seda preta, gravata italiana florida, sapato de verniz bicolor, cravo na lapela, brilhantina no cabelo e exageradamente perfumado a “Lancaster”, chega ao 7º andar do Martinelli, carteirinha do sindicato na mão. Adalberto, o segurança de quase 2 m de altura e 1 m de largura, olha atentamente para a foto e para o rosto de Nereu e, com o semblante grave, autoriza sua entrada.
Ele adentra glorioso o espaço e jura ter ouvido o suspiro coletivo das moças presentes.
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Nota do autor: Homenagem a um saudoso amigo, ex-diretor e ex-funcionário do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região que tinha muitas histórias sobre suas aventuras para contar.
