Notibras

NÓIS É TUDO DOIDO…

Cruzei com a mulher numa esquina perdida pelaí.

Baixinha, cabelos oxigenados, batom carmim meio borrado e um vestido psicodelicamente colorido.

“Fotografei” a figura na hora e a empatia se incumbiu do resto. Segui observando.

“Cara, ela tá no celular?… Não tá, não …Tá falando sozinha!”, pensei.

Pois a mulher falava, gesticulava, parava uns segundos em silêncio e retornava ao monólogo anônimo. E em voz alta.

O ônibus chegou ao meu ponto; entrei e subi a Avenida Brigadeiro Luiz Antônio em direção a Avenida Paulista. Pela janela pude ver a imagem da mulher na calçada sumindo e sumindo e sumindo…

Segui pensando:

“De que tanto falam os que falam sozinhos pela rua?”.

Com quem dialogam –se é que há algum diálogo -, caminham, formulam perguntas, buscam respostas? De que caem na gargalhada e às vezes choram? Para onde vão aqueles que não têm lugar, território? De onde vem? Que lembranças e estórias carregam?

Em pé dentro do ônibus lotado lembro-me de um filme marcante de anos atrás, “Perdidos na Noite”, que narra o encontro, em Nova Iorque, de um cowboy “caipira” , Joe Boy, com o Ratso, punguista malandro sobrevivente das ruas e do submundo da Big Apple numa interpretação magistral de Dustin Hoffman. Vidas perdidas que se cruzam, se ajudam e se descobrem como humanos outra vez. Tudo motivado pelo “gatilho” disparado pela mulher falante solitária.

Chego na Paulista, desço do ônibus e caminho pelo imenso calçadão entre centenas de pessoas. Percebo que estou em Sampa, numa Big Apple própria, latino-americana, assim como Joe Boy e Ratso. Eu, a mulher que fala sozinha e mais 15 milhões de seres perambulantes.

Hoje, quarenta anos depois, a presença e a cumplicidade com aquela mulher ainda me acompanha e, de certa forma, me incomoda. Porque eu não interferi? O que me fez apenas observar e não dirigir-me até ela em busca de um diálogo real? Talvez a solidão e o anonimato da cidade grande; quem sabe a minha própria solidão de também “falador solitário das ruas”…

“De que tanto falam os que falam sozinhos pela rua?”.

Jamais cheguei a alguma conclusão racional e tudo o que sinto são subjetividades, metafísica de mesa de bar, percepções meio “porra-loucas” que teimo esconder bem escondidas no interior de minha bolso de couro transpassada no peito como um resquício “hiponga revolucionário” lá dos meus anos 70.

Contudo e ao cabo, o fato é que a mulher que falava sozinha grudou em mim como parceira fiel e eu o seu cúmplice sincero. Todos dias caminho trilhas, ruas e avenidas e me pego em alguma esquina e –quando percebo -, estou “falando sozinho em voz alta” e gesticulando e sorrindo enigmático, gargalhando mesmo, minutos em profundo silêncio e olhando o movimento ao meu redor como se eu não estivesse ali, nem lá, em lugar algum.

Finalmente entendo que há um encontro marcado com ela; a mulher do vestido colorido psicodélico que jamais saiu de minha cabeça. Encontro improvável de vidas anônimas.

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Gilberto Motta é escritor, jornalista, professor/pesquisador de pessoas, ruas, esquinas e apaixonado por seres solitários que –como ele – seguem pela vida falando sozinhos. Vive na Guarda do Embaú, vila de pescadores e turistas no litoral Sul de SC.

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