Estamos na praia. O mar logo ali. E, no entanto, o frio pega e o vento sul corta a alma. Alma?
A pele sente gelo debaixo de tantas blusas. O corpo dói enquanto o velho cara caminha buscando romper mais uma trilha. Por aqui é mesmo assim: verão de festa; inverno de capote pesado, cachecol, gorro de lã e trilhas a caminhar.
Faz anos que o cara cumpre a mesma rotina das estações. Mais um inverno e enfrentamento. “(…) no junho passado foi aquele encontro com a doidinha no Costão. Neste junho, o que será?”
Passado o tempo de abertura do mercadinho, o cara terminou o café com pão de queijo na padaria da pequena vila, comprou cigarros e foi caminhar.
Chegou na Prainha e a maré era vazante. Lembrou-se de dona Nhá Biloca e das rezas contra o quebranto. Tirou as chinelas e molhou os pés feito ritual. E aí veio o dragão.
“Tá a fim de ir? Munta aí, se agarra nas escamas e vamos nessa!”
O cara nem pensou duas vezes. E lá foram eles em direção ao mar grande.
Chulap e Chulap – mergulha e volta. E o cara agarrado na escama dorsal do dragão seguindo firme.
“Agora é a divisa, o mar grande. Vamos?”
Chulap e foram.
Logo avistou a Ilha dos Corais. O Costão de pedras era o único porto possível.
O dragão gritou para o cara pular. E lá foi ele se esfolando pelas pedras com navalhas de mariscos… Aportou. Estava na ilha.
Subiu pela picada em meio ao caminho na pequena mata. Chegou em frente à casa… Anos se misturaram. Não sabia mais do ontem e nem do hoje.
Ninguém na pequena casa. Lembrou-se na caverna de pedras sobre o mar. E lá estava ele:
“Seu João!…”
“Oi, João para te servi, fio!”
Não era possível! Seu João morrera há mais de vinte anos! Mas estava ali mais forte que o cara ainda todo cortado dos mariscos nas pedras.
“Vem cá fio, vamu por umas plantinhas aí…”
O cara dormiu até a manhã do outro dia. Acordou e Seu João estava ao lado dele.
Perguntou como seria isto possível?
Seu João apenas respondeu:
“Ihhh…morri lá no continente, mas voltei pra casa, aqui na ilha.”
Durante a semana foram dias mágicos. Pescarias, madrugadas contando causos e histórias, e cantando canções com o violão velhinho dele.
Teve até a caça aos gambás da ilha com potes de cachaça na frente da cabana. Os gambás bebiam e amanheciam chapados.
Naquela manhã chegara a hora.
“Vai fio, vorta pra lá. Lá ainda é o teu lugar”.
O cara abraçou o Seu João para nunca mais. Subiu no dorso do dragão e seguiram pelo mar rumo ao rio da Guarda. Na beira da Prainha, o cara ainda pode ouvir o dragão desejando felicidades e atenção:
“Não se esqueça das sandálias, os pés doem, meu amigo”.
……………
*Gilberto Motta: jornalista, professor, escritor. Nasceu num circo teatro rodando pelo interior do Brasil. Estudou, fez mestrado e virou professor. Aposentou-se há alguns anos e vive na pequena comunidade da Guarda do Embaú SC. De lá, envia os sinais de fumaça através de seus textos e garrafas de algoritmos náufragos.
……………
*Tasso Claudio Scherer, nascido em Florianópolis, é um exímio captador de imagens do cotidiano da cidade, embora se declare fotógrafo amador por excelência. Começou a fotografar em 2011, para acompanhar o nascimento e crescimento do filho caçula. Gostou da empreitada e foi se aperfeiçoando com diversos cursos, entre os que se destacam no Senac e na Univali. Dono da livraria “Desterrados”, na Rua Tiradentes, no Centro de Florianópolis, busca sempre um ângulo diferenciado nas suas fotos. A Ilha e sua luz; as ruas e casarões; o mar e os amanheceres são suas molduras preferidas. Não gosta “do cinza, nem do fascismo.” Gosta “da vida, das cores e das gentes”. Fonte Tasso Scherer – Minha história – Floripa Centro.
