Notibras

Nostalgia sugere que o amor está ali na esquina, à nossa espera

(O amor ali na foto…)

………..

Madrugada quente. A Ilha está um panelão dos infernos. Sem a mínima possibilidade de encontrar o sono, remexo o velho álbum de fotografias. Nele encontro antigas fotografias amareladas pelo tempo. Lá estão Mário/Motinha e Nair/Nha’Fia. As fotos foram tiradas nos anos 40, na cidade de São Paulo. Era o tempo do rádio. Da rádio Bandeirantes, PRK 9, a mais importante e famosa emissora paulista daquela época. Em sua maioria, são registros de situações reais vividas nas sessões do programa de auditório criado pela dupla: Na serra da Mantiqueira. Ali encontro uma transversal do tempo aprisionada pela lente da máquina, pelo filme e pelo olhar atento e sensível de um fotógrafo anônimo de quem não tenho referências nem registro. Lamento, por um instante, o fato de sermos tão displicentes para com a história. As leituras recentes de Tarkóvski parecem mexer comigo em forma e conteúdo muito além do que suponho. “Quem volta ao passado quer ver o tempo”.

Lá estão, ao lado de nossos pais ainda bem jovens, parentes/artistas conhecidos (Tio Biguá, Cascatinha e Nhana, Capitão Furtado, Laureano, João Pacífico e outros tantos) e pessoas anônimas do cast da rádio. Há também flagrantes do auditório sempre cheio de gente. E o incrível é que o programa era ao vivo e -pasmem!- às cinco horas da manhã.

Deixo-me levar pela nostalgia de um tempo que não vivi, mas que percebi suas pistas através das narrativas de nossos pais. Percebo que aprendi -e apreendi- algumas coisas delicadas e fundamentais para um ser vivente. Por exemplo, que o fato de a fotografia lidar necessariamente com o real faz com que seja tratada como algo sem importância, como se não decorresse de uma ordenação de linguagem, como sendo um simples registro viabilizado por processos tecnológicos que permitem o aprisionamento do tempo, nada mais. Mas onde ficarão outros potenciais de indagação ou de surpresa? Se estivermos lidando com o real roubado ao tempo, o que vivencio nesta madrugada mormacenta é uma sucessão de magias e de mistérios, fragmentos de um verdadeiro exercício de esculpir o tempo.

Viro mais uma página e lá estão eles. Motinha e Nha’ Fia em plena ação. No amplo palco, junto ao enorme microfone de pedestal, a dupla se olha com cumplicidade e a fotografia tem um certo movimento, como se dançasse junto com os artistas. Não sei o que estão cantando -nunca perguntei a eles e creio que mesmo eles não saberiam dizer exatamente detalhes assim. O que depreendo é o clima de intensa integração, de celebração, de alegria. Penso em Dionísio e suas andanças vagando pelas cidades, levando a orgia/festa e a loucura/delírio aos quatro cantos do mundo. Pois é assim que conheci essa dupla “do barulho”; talvez, muito antes de percebê-los como meus pais.

Para mim eles sempre foram tantos, muitos, infinitos. No circo-teatro, a cada noite, eles poderiam surgir no palco como heróis, vilãos, bruxas, palhaços, bêbados, reis, otários, Jesus Cristo, Judas, prefeito, senhor de engenho, negro de senzala, mocinha ingênua das peças de amor ou nas tardes de domingo como lobo mau, caçador, chapeuzinho vermelho ou vovozinha. Mas os meus personagens preferidos sempre foram únicos: Motinha e Nha’Fia. Neles, eu sempre me reconheci.

É incrível como a fotografia lida -o tempo todo- com o corriqueiro e o preexistente, comprometidos com a constante reinvenção dos espaços e com a construção de uma poética do banal. Observo o álbum e uma pequena foto esquecida no canto da página me chama atenção. É incrível, mas não me lembro de tê-la percebido antes. E olha que já folheei esse álbum um milhão de vezes. O movimento aprisionado na foto é impressionante. Intenso.

A fotografia é de 1949 e foi tirada na cidade paulista de Mogi-Mirim, segundo o registro escrito com a letra de nossa mãe. O cenário é uma rua da cidade tendo Mário e Nair ao lado de um belo carro -talvez deles? Não sei!- Homens de terno conversam na calçada enquanto um menino negro, de calças curtas, prepara-se para atravessar o campo de visão da câmera.

Há um movimento incomum roubado nessa foto. Mário veste um páreo – paletó diferente da calça e sem gravata – e traz pendurada no pescoço uma enorme máquina fotográfica. E faz pose de artista. Nair tem um lenço prendendo os cabelos loiros e cacheados, bem ao estilo das atrizes de Hollywood daquela época-, vestido estampado até abaixo dos joelhos, bolsa de viagem e um detalhe: carrega um barriguinha saliente, o que permite supor que nossa mãe estava grávida de nosso primeiro irmão que não chegou a vingar. O fato é que a foto aprisionou aquele momento de intensa felicidade. Está ali eternizado.

Amanhecia quando decidi guardar o álbum. Mas aquela fotografia -ou talvez a emoção que vivi pelo inesperado, pelo imponderável-, jamais deixará de fazer parte de mim. Não sei dos detalhes da história. O que sei é que assim como um dia eles se encontraram, se amaram e foram felizes para sempre, eu e o mano Mário seguiremos pela vida cultivando a certeza de que o amor é a única forma de não enlouquecer. É o anti-suicídio existencial, embora nos deixe sempre apaixonadamente malucos.

Os dois ali, pai e mãe, juntos num tempo estático, petrificado pelo instante da foto; de um lugar improvável apontam para a necessidade cada vez mais fundamental de aceitarmos que, talvez, o amor e o verdadeiro sentido da vida podem estar ali na esquina, à nossa espera!

Sair da versão mobile