Ontem, quando foi anunciado o pacto de paz entre Israel e o Hamas, ou, mais precisamente, o primeiro estágio de um cessar-fogo combinado com troca de prisioneiros e retirada parcial, ele veio “infiltrado”. Infiltrado porque sabia que teria de atravessar domos. Barreiras invisíveis, construídas com lógica de poder e controle, até tocar a superfície de uma realidade exausta.
Israel ostenta vários domos: o domo de Ferro, seu sistema de defesa antimíssil; o domo dos EUA, com seu apoio diplomático e militar inconteste; o domo da imprensa, quando esta se cala ou se alinha mais facilmente ao discurso dominante; e o domo dos governos cúmplices, que preferem a estabilidade institucional (ou o status quo) à ousadia de enfrentar o que há de mais brutal no conflito. Nesse tabuleiro, qualquer voz dissidente é rapidamente neutralizada ou ignorada.
E o acordo entrou sorrateiramente, via Flotilha Global Sumud. Ali estavam ativistas climáticas como Greta Thunberg, dezenas de outros defensores de direitos humanos, vozes periféricas que escancararam que o mundo está observando. Não chegou pela sala oval de palácios ou despachos diplomáticos frios: chegou por navios que simbolizam resistência, presença direta, visibilidade.
Porque essa guerra não podia ser “vencida” no sentido tradicional. Quem quer que vencesse, despertaria ondas de ressentimento maiores, ou seria afogado nas ruínas que ele próprio gerou. E parte da sociedade já estava fatigada: os números (de mortes, de destruição, de lágrimas) se acumulavam até rolar o ponto de saturação moral. O discurso de ódio, tão inflamado há anos, não conseguiu se sustentar numa areia movediça onde tudo escorrega. O ódio precisa de certezas, mas a guerra, sobretudo esta guerra, mina certezas.
Há ainda mais: infiltrou-se também na obsessão de Trump por um Nobel da Paz. A data coincide, os holofotes foram montados, o prestígio buscado. O acordo, sob esse prisma, é tanto instrumento diplomático quanto performance e parte de um espetáculo global. Ele se impôs, porque o desgaste, o clamor internacional e a gravidade da catástrofe humanitária o empurraram para a superfície.
Agora, só as próximas fases vão revelar quem realmente saiu ganhando. Se a retirada continua, se o desarmamento é real, se a reconstrução terá participação local, se haverá justiça para os muitos silenciados, essas serão as pistas mais reveladoras.
Uma coisa parece certa: com a possível entrada mais intensa da imprensa internacional, a verdade será projetada contra todos os muros de mentira. Ninguém poderá alegar ignorância como desculpa. O mundo verá o que antes era abafado.
Mas resta uma dúvida inquietante: os cães de guerra — aqueles que lucraram com armas, defesa, medo, divisão — estão satisfeitos com essa trégua ou veem nela apenas uma pausa estratégica? Quando os clarins se silenciarem, a proliferação de narrativas de retaliação, recrudescimento e vingança pode estar apenas adormecida. Se o acordo for realmente paz, ele vai se testar no cotidiano dos territórios, nas vidas que restaram, nos escombros que precisam ser reconstruídos, não apenas em discursos.
Se a guerra foi “suspensa”, ainda resta provar que o fim dela não é apenas outra forma de recomeço.
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Lamartine Teixeira, analista de Relações Internacionais, é o mais novo colaborador para o Ponto de Vista de Notibras.
