À época eu, divorciado há algum tempo e recém aposentado, me associei a um amigo para abrimos uma empresa promotora de eventos, embora pequena, bem- conceituada no mercado e com grandes perspectivas de crescimento. Meu sócio, ao contrário de mim, era um excelente administrador, mas não tão bom nas relações comerciais e humanas, assim ele cuidava da estrutura da empresa, e o restante cabia a mim.
Eu fazia toda a parte de vendas, negociações para fechamento de contratos, monitorava os procedimentos burocráticos, como licenças junto a órgãos oficiais, quando a situação exigia, contratação de equipamentos e até providências de transportes e hospedagem de participantes e tudo o mais envolvido na prestação dos nossos serviços.
Foi numas dessas vezes, atendíamos uma associação nacional de advogados que realizaria um seminário aqui na capital paulista, todas as medidas necessárias para que tudo corresse da melhor forma possível haviam sido tomadas e aguardávamos apenas a data do encontro.
Como sempre, nesse tipo de atividade, eu acompanhava a chegada dos participantes, supervisionando as orientações para credenciamento e check in dos hóspedes nos hotéis, pois, por mais que se verifique com antecedência o cumprimento de todos os quesitos para nada sair em desacordo com o planejado, sempre algo foge ao controle, e dessa vez não foi diferente.
No balcão de credenciamento, rigorosamente organizado por ordem alfabética dos nomes dos inscritos, pois o evento era de porte médio, com por volta de 600 participantes, exigindo muito capricho nessa etapa, para não gerar atrasos em relação ao horário previsto para a abertura, o que, quando acontece, acaba por prejudicar toda a programação, notei um pequeno alvoroço na letra “M”, que, por ser numerosa, tinha para ela uma atendente exclusiva.
Rapidamente me aproximei e me inteirei do problema: a ausência na lista de inscritos do nome de uma linda participante do estado da Paraíba. Uma morena, de mais ou menos 1,75 m, minha altura, mas com o salto alto me superava por uns bons 10 cm; com seus prováveis 35 anos, esguia, mas não exageradamente, cabelos lisos e longos, um lindo par de olhos cor de mel, lábios grossos, mas naturais, seios provavelmente naturais também, nem pequenos e nem muito grandes, enfim, uma mulher muito atraente, simpática e educada.
Apresentava-se um pouco alterada, mas sem perder a linha. Elegantemente trajada com uma saia branca não muito longa, mas discreta, blusa e sapatos vermelhos.
Para completar, um aroma sensual, certamente de algum perfume francês. Disse a ela para manter a calma, que tudo seria resolvido, retirei-a da fila, pois o contratempo já provocava um pequeno burburinho. Seu nome: Marina Simões.
Saímos dali e fomos procurar o responsável pela delegação paraibana. Sempre levava comigo, em eventos de porte médio para cima, uma lista com o nome e o número do celular de pessoas das instituições contratantes responsáveis por subgrupos para facilitar a resolução de situações imprevistas como essa. No caso, por se tratar de uma atividade envolvendo todas as unidades da federação, havia um coordenador para cada uma delas.
Logo o localizei e, conferindo a lista de inscritos encaminhada com antecedência, onde, além dos nomes, constavam também outros dados cadastrais de cada um e, verificando o número da carteira OAB da Dra. Marina, não foi difícil descobrir o problema, seu nome havia sido grafado de forma errada e rapidamente solucionamos o caso.
Acompanhei-a de volta ao balcão de credenciamento, para me certificar de não haver mais nenhum embaraço, mas também pelo prazer de sua agradável presença, e fiz a mesma coisa em relação ao check in do hotel, pelos mesmos motivos. Tudo resolvido, me despedi na certeza de a rever fortuitamente pelos corredores. Ela subiu para sua suíte para deixar as bagagens, e o início das solenidades deveria se dar em poucos minutos no salão de convenções.
Durante todo o dia tivemos oportunidade de nos encontrar rapidamente por diversas vezes e, em todas elas, nos cumprimentamos de forma afável e sempre perguntava a ela se estava tudo bem, ao que respondia afirmativamente; durante o coffe breake pudemos trocar algumas palavras e aproveitei a oportunidade para convidá-la a jantar comigo no espaço reservado para o pessoal da organização, como forma de me retratar pelo incidente da manhã, e, para meu deleite, ela aceitou.
No horário combinado a aguardei na entrada do restaurante. Ela chegou pontualmente, exibindo um frescor de quem havia tomado um banho relaxante, com um traje mais casual em comparação ao usado durante o dia, mas com a mesma elegância de quando a conheci naquela manhã, e exalando o mesmo perfume que me inebriou da primeira vez. Identifiquei-o como sua marca pessoal e, para superar um certo clima de formalismo reinante, elogiei a fragrância e perguntei qual era a origem. Ela me respondeu dando um sorriso, nitidamente lisonjeada com minha observação:
– É francês, “Eau de Parfum J’dore de Dior”.
Esse curto diálogo foi suficiente para quebrar o gelo, e seguimos à mesa para dois estrategicamente reservada por mim em um canto privilegiado, a nos garantir certa privacidade. Já descontraídos e nos permitindo alguns gracejos discretos, pedi o cardápio e escolhemos um salmão grelhado com risoto ao molho de gorgonzola e alcaparras e perguntei se apreciava um bom vinho. Ela respondeu com ares de quem conhece o assunto:
– Adoro vinho tinto e seco, porém peixe recomenda uma harmonização com branco, mas confesso, não é meu predileto.
– Puxa! Uma feliz coincidência. Mulheres normalmente preferem os suaves, roses e brancos. Eu, do mesmo modo, sou mais do tinto e seco. Mas há uma solução: podemos pedir um Pinot Noir, um tinto não muito encorpado, baixo tanino e acidez, por essas características, também harmoniza com peixe.
– Excelente sugestão! Vamos de Pinot Noir, então.
O garçom nos trouxe um Vieilles Vigne Bourgogne, e eu, de brincadeira, disse:
– Francês, para combinar com seu perfume.
Ela, já bem descontraída, riu e me chamou, carinhosamente, de bobo. Brindamos e, a partir daí, as coisas fluíram maravilhosamente. O prato estava delicioso e, à medida que consumíamos a bebida, nossa interação aumentava. Conversamos sobre todos os assuntos que nos vieram à cabeça. Falamos sobre nossas vidas pessoais, ela me contou sobre algumas experiências profissionais, falamos sobre literatura, cinema, música, comida e hobbies.
O tempo passou rapidamente, pedimos sobremesa, café e licor, assinei a conta e nos dirigimos ao elevador para nos recolhermos às nossas respectivas suítes, pois já passava das 23h e, no dia seguinte, os trabalhos seriam retomados logo cedo. Por mais uma dessas coincidências da vida, estávamos hospedados no mesmo andar, e eu a acompanhei até sua habitação.
A conversa, no entanto, estava animada e acabamos nos demorando um pouco mais à porta do quarto, e, quando pensei em me despedir, surpreendentemente ela me convidou a entrar e continuarmos o papo por mais alguns minutos. Ǫuase sem acreditar no que ouvia, naturalmente, aceitei o convite. Nos acomodamos em uma pequena sala à entrada. Ela procurou alguma bebida no frigobar, mas nada do que havia combinava com o momento, foi quando sugeriu pedirmos um champagne ao serviço de quarto.
O que aconteceu depois disso, me reservo o direito de não narrar em detalhes, somente digo que passamos aquela noite juntos. E foi sublime. Jamais poderia supor, ao acordar na véspera e iniciar minha rotina diária, que, em apenas algumas horas, viveria tão intensas emoções e devo confessar, apaixonei-me por aquela mulher encantadora. Impossível evitar o chavão: “foi amor à primeira vista”.
Lamentavelmente o evento terminaria naquele dia e, ao final da tarde, as delegações já começariam a retornar.
Seu voo de volta estava marcado para pouco depois da meia-noite e me ofereci para levá-la ao aeroporto de Guarulhos, logo após concluir os últimos acertos com a administração do hotel. Lá poderíamos comer alguma coisa antes de seu embarque. Nos despedimos com um abraço apertado e um longo beijo. Desejei-lhe boa viagem, trocamos os números de celular e combinamos de nos encontrar quando eu fosse a Recife para um evento da empresa já agendado para dali a dois meses.
Nos dias que se seguiram nos comunicamos com grande frequência por mensagens ou ligações telefônicas. Parecia que, quanto mais nos falávamos, mais sentíamos saudades mútuas. Finalmente chegou o dia de eu ir para Pernambuco.
O evento durou três dias, mas para mim pareceu ter transcorrido um mês, tão grande era minha ansiedade. A distância entre Recife e João Pessoa é em torno de 100 km, as cidades se ligam por uma estrada duplicada e muito bem pavimentada, permitindo um deslocamento de aproximadamente uma hora, pela minha impaciência, um tempo interminável.
Finalmente nos encontramos e revivemos os momentos de paixão de dois meses antes, quando nos conhecemos. Depois disso tivemos oportunidade de nos ver por mais algumas poucas ocasiões, quando coincidia de termos compromissos de trabalho nos mesmos locais ou em locais próximos e sempre nos despedíamos com os nossos corações partidos, com a sensação de que o tempo juntos não foi suficiente.
Essa história transcorreu durante o ano de 2019. No mês de maio, no seminário jurídico em São Paulo. Planejamos de nos encontrar com mais tempo no Réveillon, quando tiraria alguns dias de descanso e ela também, aproveitando o recesso forense; poderíamos assim dedicar um tempo somente para nós. Viajei para sua cidade e, a partir de lá, percorremos de carro o litoral nordestino no sentido sul, chegando até o estado de Alagoas, conhecendo praias paradisíacas e pernoitando em cada local que nos aprazia, permanecendo por quanto tempo resolvêssemos.
Naquele momento já chegavam notícias da Ásia e da Europa a respeito da contaminação pelo corona vírus. No entanto, as informações eram confusas e contraditórias. Nós, como a maioria dos brasileiros, ainda não havíamos compreendido suficientemente a gravidade da crise que não tardaria a aportar por aqui. Assim, fazíamos planos de estar juntos novamente nos dias de Carnaval.
Esse encontro acabou não acontecendo por outras razões, pois as autoridades governamentais ainda não haviam adotado as necessárias medidas e orientações à população, possivelmente para não terem de suspender as festividades, priorizando a questão econômica em detrimento da saúde da população. Mas o que impediu foi o fato de minha empresa ter sido contratada para realizar um festival cultural alternativo no interior do Rio Grande do Sul, exatamente nos dias de folia.
Passados os feriados, a situação escalou para o nível de emergência máxima, gerando todas as consequências com os reflexos mundiais largamente conhecidos. Em um primeiro momento, nosso microuniverso foi afetado de forma menos importante, mas nos deixando profundamente contrariados, pois nossa intenção era estar mais próximos no novo ano e logo percebemos as limitações impostas pela necessidade do isolamento social, porém, não imaginávamos até que ponto, em breve, nossas vidas seriam impactadas.
Conversávamos por telefone diariamente e nos comunicávamos por WhatsApp várias vezes ao dia, sempre lamentando a falta de previsão de quando teríamos condições de nos reencontrar, tentando adivinhar quanto tempo durariam as medidas restritivas.
A família de Marina, de classe média, é de uma cidadezinha no interior da Paraíba, com menos de 6 mil habitantes, a 445 km de João Pessoa, chamada Santa Cruz. Ela, há dezessete anos, havia se transferido para a capital do estado para cursar direito na Universidade Federal. Concluída a formação, montou seu escritório em sociedade com amigos de faculdade e estabeleceu moradia por lá.
O irmão caçula, alguns anos depois, também se mudou para o mesmo município e com o mesmo objetivo: ingressar na universidade. O mais velho, funcionário público federal, foi transferido para Brasília, tendo constituído família e se radicado no DF. Dessa forma, os pais passaram a viver sozinhos. Isso, até então, não representava grande problema, pois ambos eram saudáveis e não muito idosos, além disso, os filhos, cada um de acordo com suas possibilidades, costumavam visitá-los com certa frequência.
Entretanto, em meados de 2020, a mãe de Marina contraiu a covid e foi internada em estado grave, permanecendo vários dias na UTI da unidade do SUS Complexo Hospitalar Regional Deputado Janduhy Carneiro, em Patos, município do estado, a aproximadamente 200 km de distância. Ela, se licenciando do escritório por alguns dias, viajou para Santa Cruz. Como a mãe não se recuperava e infelizmente veio a falecer – uma das mais de 700 mil vidas ceifadas pela irresponsabilidade do governante de plantão, até hoje livre de punição por esses crimes – prorrogou sua estada.
Falávamo-nos constantemente, mas quando isso aconteceu, embora tenha se mantido emocionalmente firme para dar o necessário apoio ao pai, compreensivelmente, nossa relação ficou em segundo plano. Minha vontade era largar tudo em São Paulo e ir encontrá-la em sua terra natal, mas as coisas estavam muito difíceis por aqui também. Além das dúvidas em relação aos riscos de viajar, não tinha claro se minha presença por lá tornariam as coisas ainda mais confusas.
Por outro lado, meu sócio e eu estávamos avaliando até que ponto deveríamos insistir em manter a empresa funcionando, pois, evidentemente, não conseguíamos novos clientes, uma vez que as reuniões presenciais estavam proibidas por tempo indeterminado. Acabamos por tomar a decisão de encerrar as atividades para não correr o risco de insolvência, atitude que se mostrou acertada, dado o prolongamento da necessidade do isolamento social, nos forçando à demissão do nosso pequeno grupo de funcionários.
Marina se desvinculou do escritório em João Pessoa e voltou a morar em Santa Cruz, conseguindo alguns clientes por lá, embora não suficientes para manter seu nível econômico anterior, mas como o pai recebe uma boa aposentadoria, na condição de coronel da reserva do Exército, e o custo de vida no interior é bem inferior ao da capital, foi possível se reestruturar relativamente rápido.
De minha parte, perdi meu pai e muitos amigos – mais alguns números nas estatísticas do genocida –, mas também consegui me reorganizar de forma razoável; dispondo de alguma reserva financeira e com o redimensionando dos meus gastos pessoais, passei a viver somente da aposentadoria, mas o fato é que, mesmo com o fim da crise sanitária, tanto a vida de Marina como a minha, o que deve ter acontecido com a maioria das pessoas, não voltaram ao seu curso anterior. Isso interferiu de forma determinante em nosso relacionamento.
Mantivemos contato, porém, cada vez com menor frequência. Os acontecimentos turbulentos dos últimos anos acabaram por esfriar nosso romance e parece ter nos causado certa insegurança quanto a sua continuidade. Do meu lado, ainda penso e sinto muita saudade dela. Desde que a conheci, não consegui me relacionar de forma estável com nenhuma outra mulher, mas não sei com certeza até que ponto ocorre o mesmo com ela.
Passados quase três anos, não posso mais continuar nessa indefinição. Completei recentemente 61 anos, mas me sinto muito disposto e saudável, felizmente, fazendo ainda muitos planos. Por isso, no próximo final de semana, viajarei a João Pessoa; marcamos de conversarmos pessoalmente sobre o futuro: se reatamos ou se rompemos definitivamente. Na segunda hipótese, não deveremos nos ver, nem tampouco nos comunicar mais. Marina será apenas uma doce lembrança em meus pensamentos. Nossas vidas seguirão caminhos diferentes…
