“O tédio de viver sempre na mesma personagem é dissipado por um instante, como se a gente subisse ao palco, quando outra pessoa forma de nós uma ideia falsa (…)”
Marcel Proust, O caminho de Guermantes, livro 3 de Em busca do tempo perdido.
Juarez caminhava distraído em uma tarde carioca quando ouviu alguém gritar, do outro lado da rua:
– Juvenal! Ô Juvenal!
Deteve-se, olhou um desconhecido que lhe acenava, sorrindo para ele com trocentos dentes. Ele não ia responder, muito menos atravessar, mas o sujeito tomou a iniciativa e, driblando os carros, chegou à calçada em que estava e o abraçou.
– Juvenal! Há quanto tempo!
O bafo do cara era prova de que estava caindo de bêbado.
– O amigo está enganado. Meu nome é Juarez – tentou explicar Juarez, enquanto recuava para escapar dos vapores etílicos. – Aliás, não o conheço.
– Sai dessa vida, mermão! Cê é o Juvenal, estudamos juntos no colégio… porra, esqueci o nome. Excesso de birita. Mas lembro bem de você.
– Não, sou o Juarez. E, sinto muito, nunca o vi antes – ia dizer “nunca o vi mais bêbado”, mas se conteve.
O pinguço, claro, não acreditou.
-Tá me tirando, Juvenal? Cê é o Juvenal sim, para com isso. Tem visto alguém da turma?
– Meu nome é Juarez, não Juvenal – contrapôs Juarez em tom ríspido. – E nunca tive turma na adolescência aqui no Rio, nasci e fui criado em Pindamonhangaba, estado de São Paulo.
– Pindamo o quê? Uma cidade com um nome desses não existe! – observou o bebum, com uma gargalhada. Depois, um pouquinho mais sério, ou menos de porre, como queiram:
– Tem certeza de que você não é o Juvenal?
– Claro que tenho certeza, porra! – explodiu Juarez.
– Tá legal, então desculpe qualquer coisa, Juve…quer dizer, seu Juarez.
E afastou-se, murmurando:
– Coisa de louco. Cara de um, focinho do outro…
Juarez suspirou. O pior é que isso sempre acontecia com ele. Já fora chamado de Juca, Juvêncio, agora Juvenal, de todos os nomes de homem começados pela sílaba “Ju”. Deu um suspiro resignado e disse a si mesmo:
“Devo ter um desses rostos maleáveis, que vão em qualquer figura. Um simples rosto genérico”, concluiu, tristonho.
Dois quarteirões depois, uma linda morena o segurou pelo braço, interrompendo sua caminhada.
– Desculpe, o senhor não é o Nelson Gonçalves? – e dirigiu-lhe um sorriso radiante e convidativo.
Juarez olhou bem a morenaça. – “Bonita, gostosa mas sem noção” – pensou. “Nelson Gonçalves morreu faz muito tempo, acho que em 1998, com certeza antes da virada do milênio”.
Ohou-a de cabo a rabo, menos pro cabo do que pro restante. Viu coxas magníficas dentro de um vestido colado ao corpo, um traseiro pra vivente nenhum botar defeito, uma boca pra lá de sensual e seios magníficos, escondidos/revelados por um decote…Ah, o decote. Quanta generosidade!
A morena continuava a sorrir, esperando pela resposta. Juarez decidiu não mentir, só envergar a verdade coisinha pouca.
– Olha, mulher linda, se formos pro meu apartamento, no próximo quarteirão, prometo cantar só pra você.
E, segurando-a pelo braço, caprichou na entonação, cantarolando os versos iniciais de um dos grandes sucessos do consagrado compositor e intérprete:
“Fica comigo esta noite/ E não te arrependerás”.
