A história da humanidade é, em grande medida, a história do movimento. Desde os primeiros hominídeos que deixaram a savana africana há mais de cem mil anos, o ato de migrar acompanha o ser humano como parte indissociável de sua natureza. Migrar é um instinto, uma necessidade vital. O ser humano não é o animal mais veloz, nem o mais forte, mas é, sem dúvida, aquele que percorreu as maiores distâncias. É o único animal terrestre capaz de atravessar desertos, oceanos e montanhas em busca de abrigo, alimento ou simplesmente de uma vida melhor.
Migrar não é apenas um direito. É um ato profundamente humano, uma expressão de quem somos. Como lembrava Ortega y Gasset, “o homem não vive apenas pelo básico, mas pelo supérfluo” e poder escolher onde viver, trabalhar e amar é parte desse “supérfluo essencial” que distingue o humano do meramente biológico.
Mas, com o surgimento dos Estados nacionais modernos, entre os séculos XIV e XIX, algo mudou. As fronteiras começaram a se solidificar, e o ser humano, que antes pertencia ao planeta Terra, passou a pertencer apenas a uma fração dele. A criação do passaporte no modelo que conhecemos hoje, no início do século XX, formalizou essa limitação. Hoje nos parece natural precisar de um documento para cruzar uma linha imaginária, mas nem sempre foi assim. A humanidade passou a se dividir entre os que “podem entrar” e os que “devem ficar”.
O fechamento das fronteiras, no entanto, nunca impediu o movimento, apenas o tornou mais perigoso e desigual. Na Europa, o antissemitismo moderno ganhou força justamente em contextos de migração, quando judeus do Leste buscavam refúgio em países como a Alemanha e a Áustria. A reação xenófoba veio acompanhada de discursos econômicos: diziam que os imigrantes tiravam empregos, pressionavam salários e sobrecarregavam o Estado. Era a velha fórmula política de transformar o “estrangeiro” no bode expiatório das crises. Os pogroms, as perseguições, os extermínios que se seguiram mostraram ao mundo o que acontece quando se aceita a ideia de que um ser humano pode ser ilegal por existir.
Limitar migrações é uma ideia cruel. Não é crime tentar viver melhor. Não é crime fugir de um lugar inseguro, injusto ou sem futuro. E, no entanto, o sistema global segue premiando quem tem dinheiro. Os ricos podem morar onde quiserem, enquanto os pobres são empurrados para fronteiras cada vez mais vigiadas. O planeta, que é de todos, tornou-se um condomínio murado onde o valor do passaporte define o valor da pessoa.
Toda ideologia persecutória começa do mesmo modo: atribuindo aos imigrantes a culpa por problemas reais ou imaginários. Dizem que “roubam empregos”, que “ameaçam a cultura”, que “pesam na economia”. Mas essa é apenas a semente. O fruto, sabemos, é amargo: escravidão, assassinato, genocídio. Assim foi com os judeus na Segunda Guerra Mundial, com os armênios no Império Otomano, com a população de Gaza em nossos dias. A história já ensinou aonde leva o discurso da desumanização, e é assustador perceber que voltamos a ouvi-lo.
Hoje, mais uma vez, o mundo busca culpados. E recorre ao velho álibi: o imigrante. É uma ironia perversa porque são justamente os migrantes que, na maioria das vezes, revitalizam economias envelhecidas, preenchem lacunas de trabalho e trazem diversidade cultural e humana às sociedades que os recebem.
Criminalizar o movimento humano é negar a própria essência da humanidade. Migrar é existir. E, enquanto houver alguém cruzando fronteiras em busca de dignidade, haverá uma lembrança viva de que o planeta é de todos e que nenhuma linha, por mais bem traçada, é capaz de conter o impulso humano de seguir adiante.
