Nos últimos tempos, no entanto, Flávio começou a sentir a relação por parte de Ana esfriar. Algumas vezes, inclusive, nas viagens dele, não se encontravam. Sempre havia uma justificativa “plausível”, para ela nem sequer buscá-lo ou levá-lo ao aeroporto quando voltava. Outras, ainda que se vissem, não aceitava seus convites para jantar ou passarem pelo menos uma noite juntos.
Esse afastamento foi ficando cada vez mais frequente, trazendo muita insegurança e angústia a ele. Tinha de fazer grande esforço para conseguir se concentrar minimamente no trabalho e, no convívio com a família, tentar disfarçar a inquietude e fingir estar tudo bem. Até que numa dessas viagens, na qual deveria permanecer por toda a semana, Ana foi buscá-lo no aeroporto e ele propôs que saíssem para jantar ao menos em uma das noites, pois precisavam conversar para entender o que se passava. Ela disse concordar, mas recusou todos os convites feitos por ele diariamente, alegando os mais variados motivos para isso.
Finalmente no dia do retorno, ela concedeu levá-lo ao aeroporto, decidida a contarlhe a razão do distanciamento. Flávio marcou seu voo de volta para o último horário disponível, para terem bastante tempo e colocar a situação às claras. Foram a uma confeitaria localizada no próprio aeroporto, onde poderiam pedir um lanche e conversar com total privacidade.
Ana então contou que há alguns anos teve um namorado, faziam planos para morarem juntos. Porém, apesar de ele ter um excelente emprego lhe proporcionando uma situação bem estabilizada, surgiu uma oportunidade de fazer doutorado nos Estados Unidos, com uma bolsa fornecida pelo governo de lá.
O rapaz, então, demitiu-se do emprego para realizar esse sonho e romperam o relacionamento. Embora não tenha pedido para ele ficar, ela se ressentiu muito, pois o amava e com a união teria condições de deixar seu emprego no escritório de advocacia para dedicar-se integralmente à filha, Ana Paula, que tinha 9 anos, à época.
Abalada com a mudança brusca de planos, aceitou o convite de sua igreja para participar de um grupo de missionários que coincidentemente estava sendo organizado na mesma época, com destino a Paris, para iniciar a implantação da doutrina na Europa. No entanto as coisas por lá não correram da forma como esperava, tinha de trabalhar muito para poder se sustentar e a ajuda de custo paga pela igreja não era suficiente. Ainda mais, porque tinha de enviar dinheiro para a ex-sogra a fim de sustentar Ana Paula.
Assim, permaneceu por lá durante seis meses, tentando arranjar um trabalho melhor, mas não teve êxito e resolveu retornar ao Brasil. Na volta, seu irmão, proprietário de um táxi, ofereceu para trabalhar com o carro alternando os períodos, quando um trabalhasse durante o dia, o outro trabalharia à noite. Por essa época a profissão estava bem rentável e logo ela conseguiu juntar dinheiro para adquirir seu próprio carro. O trabalho era intenso, mas os ganhos eram suficientes para manter a filha e a si própria.
Há alguns meses, seu antigo namorado retornara à cidade. Havia concluído seu doutorado anos atrás e conseguiu um emprego num cargo de diretoria em uma grande empresa nos EUA, tendo sido recentemente transferido para a filial brasileira, cuja sede fica em um município vizinho. Ele a procurou, dizendo que ainda a amava e queria retomar o relacionamento e os planos de se casarem. Já há algum tempo estavam novamente juntos. Flávio ficou sem chão.
– É por isso, então, que se afastou de mim? Por que não me falou antes? Tenho sofrido muito com seu distanciamento.
– Tinha de lhe contar e não poderia adiar mais, mas não tinha coragem. Além do mais, não foi uma decisão fácil. Também gosto muito de você. Mas ambos sabemos, nossa relação não teria futuro.
– Ana, nunca lhe falei, mas pensava seriamente em ficar com você definitivamente. Teríamos de esperar alguns anos, até Raquelzinha, minha caçula, completar 18 anos.
Não queria se separar da atual mulher por enquanto, para não repetir o que, de certo modo, considerava um erro cometido com os dois filhos mais velhos, se afastar sendo eles ainda muito pequenos. A condição atual seria até pior, pois suas ex-mulheres sempre moraram na mesma cidade. Agora seria diferente.
Possivelmente, Ana não teria disposição de se mudar para a cidade dele, seria muito complicado. Além de sua vida ser organizada e seus parentes residirem todos aqui, havia Ana Paula, seus amigos, a escola, toda sua vida também. Afinal, ela era adolescente e provavelmente teria dificuldade em se adaptar em um local totalmente novo. Assim, a iniciativa de mudar de município, teria de ser dele.
– Não sabia que essa era sua intenção. Mas, ao mesmo tempo, não gostaria de ser o pivô de sua separação. Você sabe, nosso relacionamento, de acordo com minha religião, era reprovável. Isso era muito conflitante para mim. O retorno de Silvio e sua proposta de retomarmos o namoro, foi um estímulo para me decidir a romper nosso caso.
– Ah! Silvio é o nome dele?
– Sim.
– Estava amadurecendo a ideia. Obviamente, iria lhe contar. Proporia ficarmos juntos e esperar minha filha completar 18 anos, mesmo estando casado. Depois me separaria para assumirmos publicamente nossa relação. Mas, claro, corria o risco de você não aceitar. Entretanto, não houve tempo.
– Eu não aceitaria!
– Imaginei, mas tentaria lhe convencer, insistiria muito, pois lhe amo demais!
Emendando uma pergunta a outra, Flávio continuou:
– Você está Feliz? Ainda o ama? E por mim, o que sente?
Ana calou-se. Desviou o olhar e uma lágrima escorreu no seu rosto. Flávio não compreendeu o sentido da lágrima: se era por ela, por ele ou por ambos. Porém, algo ficou muito claro: a decisão estava tomada e era irreversível. Nesse mesmo instante o autofalante do aeroporto anunciou a partida do voo.
– Tenho de ir. Um último beijo?
Levantaram-se, abraçaram-se e se beijaram longamente. Um beijo misturado às lágrimas, dessa vez, profusas, desabrochadas pelos olhos de ambos e emanadas por ambos os corações. Flávio, tentando se recompor, apanhou sua bagagem e caminhou apressadamente sem olhar para trás em direção ao terminal de embarque.
O avião decolou e a mente de Flávio era mais uma vez um turbilhão. Dessa vez não adormeceu, tampouco se dispôs a retomar sua leitura de um novo livro, dessa vez Contos de Machado. Pensava o tempo todo em Ana e como seria se tivessem se conhecido em outro momento da vida. Não acreditava em reencarnação do espírito; sentiu uma ponta de inveja de Ana, pois ela sim, acreditava. E possivelmente, nesse mesmo momento estive pensando nele e alimentando sua esperança de que um dia suas almas se reencontrarão. Chorou várias vezes e quase não percebeu o tempo passar.
O comandante avisou a tripulação sobre os procedimentos de pouso. Flávio olhou pela janela e avistou as luzes da cidade. Desembarcou, parou um instante no café de sempre, e seguiu para a fila do taxi. Que ironia, sua história com Ana, começou e terminou no taxi. Agora iria tomar mais um, mas, com certeza, o condutor não seria uma bela mulher a lhe mexer com a cabeça.
Ao chegar em casa, a esposa e a filha o esperavam com um lanche à mesa. Beijou Beatriz e segurou nos braços Raquelzinha, com um beijo e um abraço apertado de saudade. Como sempre fazia, conectou o celular ao aparelho de som e ouviu os Rolling Stones tocando Ruby Tuesday, a mesma música que havia tocado no som ambiente do restaurante japonês em que jantaram juntos pela primeira vez, quando a dedicou à sua mais nova paixão, Ana:
She would never say where she came from
And yesterday don’t matter if it’s gone
And while the sun is bright or in the darkest night
No one knows she comes and goes
Good by Ruby Suesday… (Jagger e Richards)
