Lucas sonhou com o pai de sua amiga Andreia. Não falava com ela há mais de um ano, e com o coroa, há uns dez, mas coube a ele, não a ela, o protagonismo. Os detalhes iam se apagando, era geralmente o que acontecia quando acordava, mas ficaram três cenários/situações.
Para começar, o local. Era enorme, cheio de aposentos, talvez um hotel. O segundo cenário era uma grande sala, onde ele e Godofredo, o pai de Andreia, participavam de um jantar formal. Lucas jamais ficava à vontade nessas ocasiões, traquejo social não era o seu forte, mas Godô (era assim que os amigos da filha o chamavam, pelas costas, claro) sabia exatamente qual talher usar com qual prato, qual vinho apenas provar, por não ser muito bom, coisas assim. Lucas estava tenso, enquanto Godô se mostrava feliz como um pinto no lixo, conversando sobre amenidades com os vizinhos de mesa.
“Malandrage oblige”, Lucas lembra-se de ter pensado no sonho, parafraseando Noblesse oblige. Boas maneiras são um recurso valioso para depenar os otários. Era o que Godô fazia: com a sua lábia, conseguia vender gelo aos esquimós e areia aos beduínos do deserto. Mas, quando um golpe falhava, a coisa ficava feia, a família mal tinha o que comer.
Lucas certa vez descrevera Godô como “homem papel higiênico” – ou tá no rolo ou tá na merda – e a imagem fora entusiasticamente compartilhada pelos amigos de Andreia.
O terceiro cenário/situação fora a despedida. Depois que ele abriu a porta, Godô o olhou nos olhos por um bom tempo, deu um sorriso contido e desapareceu. A imagem onírica era a da última vez em que o vira em carne e osso: um homem esguio, com um bigode fino, à David Niven, ator britânico, símbolo de elegância na Hollywood dos anos 1950-1960.
Lucas acordou logo em seguida. Sabia que tudo aquilo – o hotel, o jantar formal, a presença de Godofredo – era criação de seu psiquismo; pensou a respeito e concluiu que talvez fosse um recado para levar as coisas com boas maneiras e uma pitada de malandragem, era brusco, por vezes rude, e certinho demais. E decidiu contar o sonho a Andreia.
Entrou no whatsapp da amiga e começou a escrever. Mas com enorme dificuldade, mal controlava os dedos, que não pressionavam com força as teclas. Ficou com medo de estar tendo um novo AVC (sofrera um, por sorte leve, há uns 20 dias). Afinal, postou:
– Sonh su pai ta bem
Torceu para que ela conseguisse traduzir:
– Sonhei com seu pai. Ele está bem?
Silêncio do outro lado. Depois, alguém começou a digitar. Afinal, veio a resposta:
– Monstro! Deixa esse celular! Meu pai morreu há quatro anos, e Lucas, há dois dias!!!
Vieram outras mensagens, xingando-o de tudo quanto era nome feio, mas Lucas nem leu. Atordoado, deixou cair o celular no chão. Começou a pensar furiosamente. Parecia absurdo, mas não duvidou nem por um momento das palavras de Andreia sobre a sua morte; lembrou-se até de haver sentido uma forte dor no peito, dias antes, e em seguida recordava apenas trechos do sonho. O importante foi que construiu hipóteses sobre o hotel dos mil aposentos e, em especial, sobre a presença de Godô. Se elas estavam corretas, bem, só o tempo diria.
– O hotel provavelmente é um lugar de passagem. E Godô… vejo nele o rei da malandragem, mas uma malandragem refinada, um Zé Pelintra de terno discreto e bem talhado e gravata elegante. E quem veste passeio completo não pode estar vindo de um lugar muito quente, ainda bem!
Deu um risinho, materializou-se (de novo?) no hotel e preparou-se para migrar para outro plano.
