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O maior clássico do futebol agora é outro

Este texto é baseado em meus contos sobre o Flaporco (já escrevi uns três) e no texto Rezar é preciso

Domingo, 19 de outubro, houve mais um Flaporco, o maior clássico atual do futebol brasileiro. Disputas com codinome, tipo Fla-Flu, Grenal, Bavi, Sansão, ou com apostos descritivos – Clássico dos Milhões, Clássico das Multidões, Clássico Vovô, Majestoso e por aí vai –, tudo isso ficou pra trás. Já dizia o poeta Luiz de Camões, “Cesse tudo que a musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta”.

Jorge sabia de tudo isso, e suava a camisa para assegurar uma vitória após outra do seu amado Mengão. O preço fora um quase retorno às crenças familiares. Ele, que era ateu de carteirinha, tornara-se agnóstico – alguém que não acredita em Deus, mas não nega a possibilidade de sua existência – e estava em vias de regressar ao catolicismo de seus pais. Tudo por causa do Malvadão.

A coisa começara quando, ao passar por uma loja de artigos religiosos, viu uma imagem de são Judas Tadeu. Era bonita, o preço era baixo, o santo era o protetor de seu time do coração… comprou-a. Colocou-a em uma estante na sala, perto da televisão. Antes dos jogos do Mengão, dizia sempre, meio brincando, meio a sério, frases do tipo:

– Vamos lá, são Judas. Proteja nosso time, pô!

Aparentemente, funcionou. Mas às vezes vinha um período de vacas magras, de empates e raras derrotas. Jorge sentiu que precisava dar um passo adiante em suas conversinhas com são Judas, fazendo algo de que vinha fugindo como o diabo foge da cruz: terminando os pedidos de favorecimento ao Mengão com a palavrinha “amém”, assim seja. Ele tinha consciência de isso tornava seus papos com o santo em orações, e que, por mais que nunca mencionasse Deus, o santo era, no mínimo, parça da divindade. Ora, não há fiofó de ateu (ou agnóstico, vá lá) que aguente isso; estava resvalando perigosamente para o catolicismo em versão popular medieval, em que os santos eram extremamente reverenciados, mais que a divindade – mas vitórias do Mengão valiam uma oraçãozinha ou outra. Afinal, era uma questão de fé. E, como ensinou mestre Gilberto Gil, a fé não costuma falhar.

Foi quase o que aconteceu antes deste Flaporco. Sem vergonha alguma, Jorge rezou fervorosamente a São Judas, lembrando-lhe que o Flamengo estava três pontos atrás do Palmeiras no Brasileirão, que se perdesse estaria a seis, que faltavam menos de dez rodadas para o fim do campeonato, e por aí foi. No final, como sempre fazia, suplicou:

– Por favor, meu São Judas, conduza nosso Mengão à vitória. Amém!

Mas, dessa vez, foi diferente. A imagem pareceu tremer na estante e desapareceu; materializou-se diante do agnóstico-sãojudasísta a figura de um homem já idoso, que sorriu para Jorge e declarou:

– Cara, muito prazer, me chame de Judas. Ali na estante, ouço tudo, mas não vejo o jogo. Hoje, sem dúvida, vou proteger o Flamengo, mas vim aqui pra torcer!

– Mas o senhor vai levar o Mengão à vitória?

– Vou fazer o possível. Além do mais o time é bom, o jogo é no Maraca, deve dar tudo certo.

Jorge ficou meio desconfiado, preferia pensar no santo em uma dimensão espiritual, não sentado junto a ele no sofá, um copo de cerveja nas mãos, mas aceitou.

O jogo corria, e os dois torciam que nem malucos. Vibraram com a magistral assistência de Pedro a Arrascaeta, que resultou no primeiro gol rubro-negro; com a perfeita cobrança de pênalti por Jorginho, que se redimiu do susto que dera à urubuzada, logo no início do jogo; e com a magnífica assistência de Arrascaeta a Pedro, que lançou a bola no fundo da rede da porcada. O primeiro tempo terminou 3 x 1. Judas (ele pedira para não ser chamado de São Judas, não quando estivesse materializado, assistindo a jogos) despediu-se do anfitrião.

– Bom, Jorge, vou voltar pro plano espiritual e pra estante. Não se preocupe, hoje o Palmeiras não vira, nem empata. Nem que a vaca tussa!

-Feliz como um pinto no lixo ao ouvir essas palavras, Jorge aproveitou para perguntar:

– Meu santo, o Flamengo vai vencer o Brasileirão? E a Libertadores?

– Olha, cara, não posso falar a respeito. Citando um locutor, vai ter emoção até o fim – e, num tom entre rancoroso e lastimoso:

– O problema é que essa porcada fiadeumaégua tem muitos protetores espirituais. Tem santo italiano pra dedéu, São Francisco de Assis, San Gennaro… porradas deles. Sorte nossa é que meus confrades não gostam de futebol!

E, com essas palavras Judas, o torcedor, o rubro-negro doente, materializou-se outra vez como uma estátua, na estante.

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