A noite não chegou de repente. Primeiro, foi um apagar preguiçoso do dia, um céu que escurecia devagar, como quem hesita em ir embora. Depois, um vento frio varreu o beco, trazendo o cheiro da terra úmida e das plantas dos quintais da vizinhaça. A cidade, aos poucos, foi desligando os sons. Portas se fecharam, conversas se calaram, e o silêncio, quando veio, não veio sozinho: trouxe um peso que se acomodou no ar.
No quarto de Beto, as sombras chegaram antes da noite completa. Escorreram pelas paredes, se deitaram sobre o chão e subiram para o teto, até que tudo estivesse encoberto. O armário, alto e imóvel, parecia ter crescido. A escrivaninha, no canto, guardava cadernos e lápis, mas agora era apenas um volume escuro, como um móvel abandonado numa casa sem luz.
O poste da esquina piscava a luz prateada, com a indecisão de quem pensa em desistir. Entre uma piscada e outra, a rua desaparecia. E, quando sumia, parecia que o mundo inteiro também se apagava.
A mãe tinha deixado o quarto há pouco. Beijou-lhe a testa, ajeitou o lençol e disse: “Nada vai te acontecer, meu filho. É só fechar os olhos e dormir”. Mas palavras são frágeis quando a noite decide ser densa. E esta noite parecia feita para testar promessas.
Beto ficou deitado, ouvindo o próprio coração. Cada batida era um som alto demais para o silêncio que havia. Tentou se distrair contando as respirações, como a professora de música ensinara, mas parou no número oito. O silêncio não gostava de ser ignorado.
O pai costumava dizer que medo é como cachorro de rua: se você corre, ele corre atrás; se você encara, ele recua. Beto tentou encarar. Afinal, não estava tão distante dos outros da casa. Se algo acontecesse, e ele gritasse alto, a avó, que dormia no quarto ao lado, tinha o sono leve e viria de imediato. Levantou um pouco a cabeça e olhou para o armário. O que viu foi a sombra, que parecia se alongar, como se ganhasse pernas.
Um cachorro latiu ao longe, quebrando o ar com um som agudo. Outro respondeu, mais perto, mas ambos se calaram rápido demais, como se tivessem percebido algo que não deviam. O vento voltou, mais frio, e fez a janela ranger levemente.
O trem, que passava a poucos metros de sua casa, viria em breve, esbatendo aquele silêncio denso da madrugada inquieta.
Beto puxou o lençol até o nariz. Aquele pequeno abrigo de pano guardava o calor da respiração, mas não era suficiente contra a sensação de que havia algo no quarto. Não algo visível. Algo quieto. E quietude, ele pensou, é pior que barulho.
O assoalho do corredor estalou duas vezes. O menino prendeu o ar. “A casa está só se ajeitando”, repetiu mentalmente, lembrando da voz da mãe. As casas antigas são como velhos corpos. Têm articulações que se ajeitam. E rangem. Mas, naquela noite, até as explicações familiares soavam frágeis.
Ele pensou em chamá-la. Mas se a mãe viesse agora, acenderia a luz e mostraria que não havia nada. E talvez ele não quisesse ver que não havia nada. Parte do medo era justamente não saber.
Ficou alguns minutos imóvel, tentando sentir se havia algo se mexendo no quarto. Não havia. Ou havia e estava esperando.
Decidiu levantar. Sentiu o frio do chão subir pelos pés, como a água gelada de um regato. Passou pelo armário sem olhar para ele, como quem atravessa uma rua sem olhar para os lados. Foi até a janela.
Lá fora, o beco estava vazio. As casas vizinhas dormiam no seu silêncio. O poste ainda piscava, teimoso, como se cada lampejo fosse um esforço de sobrevivência. Entre uma piscada e outra, a escuridão engolia tudo, como se o mundo fosse feito apenas de dois estados: existir e sumir.
Beto olhou por alguns minutos. O frio do vidro passou para as mãos. Aos poucos, percebeu que não havia nada à espreita. Não havia monstros, nem sombras diferentes daquelas que a luz inventa. Só o mundo, no seu tamanho real: frio, parado, alheio ao medo de um menino.
Sentiu o peito desacelerar. Voltou para a cama. O medo, percebendo-se ignorado, encolheu-se num canto qualquer do quarto, como um traste inútil.
Quando a manhã entrou pela fresta da cortina, trazendo o cheiro do café e o som distante de um rádio ligado na cozinha, a noite anterior parecia mentira. Como se nunca tivesse acontecido.
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Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).
