Depois do fuzilamento do brasileiro Marco Archer e outros em janeiro, Rodrigo Muxfeldt Gularte e outros sete condenados tiveram o mesmo destino, apesar do brasileiro ter sido diagnosticado com esquizofrenia e de a lei indonésia proibir execução nessas condições. Estima-se que mais de 130 presos estejam no corredor da morte no país asiático.
Não vou aqui falar da irracionalidade e da inutilidade do tratamento exclusivamente penal do grave problema das drogas, pois o que temos por certo é que seu tráfico é crime grave punido com duras penas tanto no Brasil quanto na Indonésia.
O que causa, ou deveria causar, comoção é a insistência da Indonésia em aplicar a pena de morte a despeito da intensa pressão internacional não apenas do Brasil, mas também da Austrália, da Noruega, de outros países que têm seus cidadãos entre os condenados, da Anistia Internacional e das Nações Unidas, que mais uma vez apelou ao dirigente da Indonésia que declare uma moratória e considere a abolição da pena capital.
O governo indonésio responde invariavelmente com argumentos de “soberania nacional”, alheio ao consenso internacional de que a pena de morte constitui um tipo de pena cruel, desumana e degradante. No caso da Indonésia, a pena de morte, adicionalmente, traduz um injustificável escárnio à dignidade humana.
A Folha, de 5 de abril passado, publicou extensas matérias sobre a pena de morte e a venda de drogas na paradisíaca ilha indonésia de Bali, das quais se conclui que o único efeito da criminalização é o aumento da tarifação das propinas cobradas.
Recomendo fortemente a leitura desses artigos àqueles brasileiros que, em tantos comentários de blogs e sites aplaudiram as execuções, às vezes impiedosamente, na suposição de que “na Indonésia a lei funciona”. Não é bem assim.
A Indonésia é um país selvagem em termos de lei penal e digo isso por experiência própria, como relatarei. Das várias reportagens destaco algumas assertivas mais impactantes: “traficantes não encontram dificuldade em abordar potenciais clientes na noite de Bali”; “a lei que manda matar não inibe o tráfico, mas aumenta a propina”; “presídio Kerobokan é o lugar mais seguro para o tráfico de drogas”; “um inglês saiu do julgamento com uma sentença de seis anos por porte de ecstasy. Quando os papeis dele chegaram a Kerobokan, a pena era de três anos. O que aconteceu no caminho: R$ 110 mil”.
Alguns traficantes lhe vendem a droga para, em seguida, avisarem a polícia. O brasileiro Archer tentou vender um apartamento no Rio para levantar um milhão de reais para comprar a comutação de sua pena. O assédio de traficantes nas ruas, hotéis, aeroportos, taxis e pontos turísticos é tal faz supor que a oferta é maior do que a procura.
Há advogados especializados na negociação de propinas, que também incluem os jornalistas, porque se o caso chega à imprensa a cotação aumenta. E por aí vai.
Na pequena experiência que tive na reconstrução de Timor Leste sob os auspícios das Nações Unidas, tive a oportunidade de familiarizar-me um pouco com o direito indonésio. Participei da reedificação das instituições jurídicas e das primeiras investigações das atrocidades indonésias durante os 26 anos de ocupação de Timor-Leste, em que um país de 200 milhões de habitantes (hoje 240 milhões) quase dizimou uma pequena nação de 1 milhão de habitantes.
A Indonésia utilizou largamente a técnica de combate denominada escudo humano, crime de guerra segundo a IV Convenção de Genebra, que consiste em fazer marchar à frente das colunas de seu exército familiares do inimigo, mulheres, crianças e velhos, enquanto disparavam fogo pesado contra os timorenses que lutavam por sua independência.
Como é usual em transições políticas para evitar vácuos normativos, o nascente Estado, por deliberação da Administração Transitória das Nações Unidas, aplicava a legislação indonésia até que o país contasse com um legislativo eleito apto a elaborar novas leis.
Ocorre que o Código de Processo Penal indonésio era tão selvagem, tão inquisitivo, tão incompatível com o devido processo legal, com os princípios das Nações Unidas, com um mínimo de dignidade para o indivíduo suspeito de uma infração penal, que foi preciso que as Nações Unidas improvisassem às pressas uma resolução que fizesse as vezes de processo penal para funcionar para o cotidiano dos crimes comuns e para as grandes atrocidades.
Noutros termos, o direito indonésio não é selvagem apenas na prática, como frequentemente ocorre no Brasil, mas também o é em teoria. No país que possui a polícia secreta mais capilarizada do mundo, de fazer inveja às imaginações mais férteis de ficções sobre o macartismo e o stalinismo, não sobra muito sequer para um arremedo de estado de direito.
Desafio o encarregado de negócios da Indonésia no Brasil, que tem entre suas missões a de desfazer incompreensões e corrigir desinformação sobre seu país, no sentido de estreitar as relações amistosas entre os dois países, a corrigir equívocos em minhas assertivas, certo de que não lhe faltará espaço na grande imprensa brasileira para tanto.
Pois bem, esse é o país que se sente com superioridade moral (ou cinismo) para condenar indivíduos à morte por tráfico de drogas, inclusive um diagnosticado com esquizofrenia, depois de estarem no corredor da morte por tempo equivalente à pena máxima prevista para o tráfico de drogas no Brasil.
Talvez sua inconsciência tenha amenizado seu sofrimento e sua dor, pois o outro, segundo relatos, soube de tudo até o último momento, teve crise de choro, de diarreia – logo assepsiado à distância com jatos d”água, porque precisava ser conduzido à morte limpo -, para depois seguir para o crematório. Até a última visita de parente ocorreu mediante propina.
Dirão alguns, se não muitos, “mas é um traficante, e os que morreram das drogas que ele traficou?”. A isso eu respondo: qual a utilidade dessa morte ritualizada em relação à outra? Tem a sociedade e o Estado o direito de matar por vingança apenas, sem utilidade?
Por tudo isso, considero corretíssimas as iniciativas diplomáticas do governo brasileiro, e bem assim a iniciativa da Secretaria de Cooperação Internacional do Ministério Público Federal de tentarem reverter a primeira execução ainda em janeiro, embora frustradas todas.
Se a Indonésia pretende aferrar-se ao seu direito de ser selvagem em nome da soberania nacional, deve pagar um preço político e diplomático alto por isso internacionalmente.
Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos