Ano Novo, vida nova! O mundo como que renasce. O que é uma bênção, mas também pode ser muito perigoso.
São Paulo, 1 de janeiro de 202? Lucas caminhava pela calçada quando presenciou o quase atropelamento. Depois viu o motorista descer, furioso, e gritar com a quase vítima:
– Quer morrer? Você não viu meu [palavra incompreensível]?
– Culpa sua! O [segunda palavra incompreensível] vinha em alta velocidade, quase me matou!
Cada um designava o bólido por um termo diferente, incompreensível, que parecia recém-criado pelo falante. A divergência linguística fez subir ainda mais a adrenalina, a porrada rolou solta. Por sorte, nenhum dos brigões estava armado.
Enquanto prosseguia em seu passeio, Lucas concluiu que a incompreensão mútua havia sido um fator importante no conflito. “Cada um achou que o outro estava zombando dele”, pensou, “pois utilizou um termo diferente e inusitado para designar o [terceira palavra incompreensível]”.
Abalado, percebeu o que havia feito. Quando se recuperou, sua curiosidade levou a melhor e decidiu tirar a dúvida. Aproximou-se de um transeunte e perguntou com delicadeza:
– Desculpe incomodar, senhor, mas como chama aquilo? – e apontou para um conversível vermelho estacionado.
– Ora, é um [quarta palavra incompreensível] vermelho. É seu? Quer vender?
Lucas disse que não, não era dele, agradeceu e voltou rápido para casa. As notícias transmitidas pela TV e pelas redes sociais confirmaram suas piores suspeitas: cada pessoa estava criando seus próprios termos para designar coisas do cotidiano, e se enraivecendo ao não ser compreendida ou, pior, ao ver o interlocutor designar o objeto por uma algaravia qualquer. Resultado, brigas por toda parte, algumas com vítimas fatais.
Sem falar no brutal aumento da violência policial. Multiplicavam-se prisões (e surras) por desacato à autoridade, dentro do esquema:
– Mostre seus [palavra incompreensível, provavelmente para “documentos”].
– Não entendi, senhor [palavra incompreensível, provavelmente para “policial”].
E o pau comia.
As interpretações veiculadas pela mídia variavam. Influenciadores da extrema direita culpavam os vermelhos, ou os comunas, ou os petralhas – era impossível saber o que seus grunhidos significavam precisamente, mas as gravuras com foices &martelos para as quais apontavam com furor eram eloquentes. Já os de esquerda, mais esclarecidos pouquinha coisa, preferiram manter um silêncio prudente. Pastores fundamentalistas afirmavam que os pecados dos homens despertaram a ira de Deus; era o que se podia deduzir dos termos ainda compreensíveis, “despertaram a ira”.
Por sorte, percebeu Lucas, substantivos mais abrangentes ou de conteúdo menos terra a terra como “culpa”, “ira” ou “humanidade” permaneciam inteligíveis, e o mesmo acontecia com os verbos. Ele tremeu ao pensar no caos generalizado que se instauraria quando todas as ações fossem designadas pelo verbo “coisar”, pronunciado de mil maneiras diferentes, inteligíveis apenas para o falante que o enunciara.
O que, exatamente, estava ocorrendo? Alguns analistas falaram em babelização. Lucas concordou, o fenômeno lembrava o que, segundo a Bíblia, se passara com os construtores da torre de Babel. Pensou em seguida em outro episódio bíblico, em que Deus atribui a Adão a tarefa de nomear todos os seres vivos. “Funcionou porque só um teve direito a voz”, pensou. “Se todos o fizessem, o resultado seria a babelização que estamos testemunhando”.
Por que isso estava acontecendo? Só podia ser uma brincadeira de mau gosto do universo ou das divindades (de qualquer modo, brincadeira dos deuses soava menos grave, menos irreversível, do que castigo divino pelos pecados dos homens). De repente, lembrou de uma passagem de Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez: “O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo”. Ele concluiu: “Vai ver que, para sobreviver à babelização, teremos de recorrer à macondização – à vida em pequenas comunidades de pessoas que se conhecem, como em Macondo, fundada como uma aldeia de vinte casas de barro e taquara por um punhado de amigos”.
Lucas só adormeceu, exausto, às 6 da manhã. No dia 2 de janeiro, porém, o mundo já não era tão recente, tão renascido de novo, e a babelização ficou para trás, como um pesadelo que se tenta (inutilmente) esquecer.
