Manuel era poeta. Quer dizer, escrevia versos relativamente bons, que lhe valiam curtidas e alguns elogios, quando postados nas redes sociais.
Mas isso era pouco para ele. Queria ser um poeta nacional e internacionalmente reconhecido, como seu ídolo e xará, Manuel Bandeira.
Seu poema inesquecível, que começou a crescer cada vez mais forte em seu psiquismo, era Desencanto, do Bandeira da fase pré-modernista, com seu magnífico último verso: “Eu faço versos como quem morre”.
Devorado pela competição que se impôs e não conseguia vencer, Manuel passou a escrever febrilmente, noite e dia. Alguns poemas nasceram razoáveis, outros bons – nenhum deles usava e abusava de rimas pobres, do tipo amor-flor-dor –, mas nada comparável ao do outro Manuel. Não eram versos feitos como quem morria.
Desesperado, Manuel releu Desencanto e acreditou identificar, na segunda estrofe, uma receita para produzir poemas inesquecíveis. “Meu verso é sangue. Volúpia ardente…Tristeza esparsa…remorso vão…Dói-me nas veias. Amargo e quente, cai, gota a gota, do coração”. Ele a tomou ao pé da letra, ou quase, para produzir pelo menos um poema consagrador, que resistisse ao tempo e imortalizasse o seu nome.
Preparou o ambiente, iluminando com velas o quarto onde escrevia. Um pouco século XIX, reconheceu, mas não chegou ao ponto de utilizar uma pena. Tampouco fez concessões ao século XXI: nada de computador.
Escreveria a mão, com uma caneta-tinteiro, em papel branco de boa qualidade. E, para que os versos fossem sangue, doessem nas veias e caíssem, gota a gota, tratou de abrir com um punhal uma das veias do braço direito (era canhoto). Cortou-a fundo, atingindo outros vasos, o sangue jorrou forte.
Os versos surgiam céleres, enquanto o sangue escorria. Mas não caíam do coração, e sim da mente e do talho aberto pela arma. E sim, doíam-lhe nas veias, e mais ainda da veia retalhada e dos outros vasos, que transportavam sangue arterial. Eram linhas magníficas, (quase) tão boas quanto os do outro Manuel, poeta maior. Imagens perturbadoras, contrastes instigantes – tudo isso estava presente nelas. Seria, sem dúvida, seu mais belo e mais profundo poema.
Quando terminou, o sangue empoçava o assoalho, em volta da cadeira.
Enfraquecido, copiou as estrofes, fazendo correções mínimas e caprichando na caligrafia. No final, uma última correção: trocou o título Elegia por Último poema. Cada vez mais debilitado, leu-o em voz alta, saboreando o ritmo.
Hora de assinar. Pegou a caneta com a mão trêmula e escreveu: Manu…
Não terminou o nome.
