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O show que nos compra é liberdade com nota fiscal

O capitalismo é um lugar onde só uma pessoa entra e todas as outras ficam assistindo, e as pessoas excluídas ficam felizes em pagar por assentos exclusivos.

É uma rede integrada de informações despejadas sobre uma pessoa que deseja apenas descascar laranjas, mas é distraída com discursos sobre a beleza e o formato da faca, até se esquecer de que qualquer faca serviria para fazer o que precisa.

Capitalismo é despertar em você a pior visão que possa ter de si mesmo, de um jeito tão sutil, alegando que lhe falta algo a ser realçado para que todos o vejam — um brilho, o mesmo brilho que ele viu que você tem sem o produto que ele acredita que você precisa ter para que outros vejam, é também te encher de marcas para lhe tornar uma pessoa “estilosa”, enquanto esconde cada vez mais a sua personalidade dentro daquilo que você usa.

O capitalismo é comprar um produto pelo simples medo de não ter quando vir a precisar, como se um dia você realmente fosse precisar de tudo aquilo que não tem.

Capitalismo, é um vendedor de caixões que nunca fala da morte, é o religioso que “pede” uma pequena ajuda para falar com mais pessoas que (basta) a fé para viver o que nenhum dinheiro pode pagar.

Capitalismo é transformar o consumo, como ver TV, em lazer familiar, e a relação familiar em consumo, como ver novelas na TV, enquanto a própria TV te fazer sentir que, consumindo, pode-se ser mais humano, ao ver algo na novela que o faz refletir que você não vive tais coisas com a sua família, a mesma família com quem se junta para ver TV.

O capitalismo é te vender isolamento social disfarçado de individualidade e força, e depois te vender portas de relacionamento virtuais para te reinserir na sociedade da qual ele mesmo te afastou.

Capitalismo é mostrar a filmagem de um evento pelo qual você pagou caro para ir, e lá assistir ao evento pelo celular enquanto grava, só para mostrar que esteve no show que outros não foram.

Capitalismo é o vendedor de biquínis no Alasca para pessoas com frio em busca de abrigo, contratado por um hotel luxuoso que tem praia artificial exigindo para seu acesso que a pessoa porte um traje de banho. O capitalismo é isso, gerar problemas estratégicos para vender soluções imediatas.

O capitalismo é condicionar manifestações emocionais a datas comemorativas, como se fosse preciso uma permissão para demonstrar afeto e, mais do que isso, determinar a forma como esse afeto deve ser manifestado, de acordo com a temática do encontro.

O capitalismo é o livre comércio que aprisiona os desprovidos de recursos à contínua caridade dos outros. Capitalismo é o mesmo livre comércio que humilha ricos egocêntricos desesperados por coisas que, de fato, como a saúde por exemplo, não têm preço.

O capitalismo é a guerra gerada pela busca de recursos que trarão riqueza a quem vencer, mas antes destroem todo território que deseja adquirir para depois gastar milhões para reconstruir o que ele mesmo destruiu, e cobrar pelo abrigo a quem expulsou.

Capitalismo é o mercado do desperdício, é o lixo reaproveitado somente quando for possível ser novamente negociado, para mais tarde, de novo, virar lixo. Como um plástico que vira artesanato, que depois do uso volta a ser lixo.

Capitalismo é o algoritmo do direcionamento das redes que o leva a conhecer pessoas como você, para que não se sinta o único ignorante no mundo. Apresentar pessoas diferentes faz de você produto imprevisível de compra, e pode ocorrer falha no direcionamento dos seus produtos na venda.

Capitalismo é você ser um produto negociado sem escolha, e ter escolhas a serem feitas motivadas no seu valor de mercado, em termos da importância de sua mão de obra.

Capitalismo é arte sem propriedade útil. A arte da comida bonita, em porções mínimas, em um prato raso e lindo, que não enchem o estômago. Capitalismo é te fazer acreditar que você precisa aprender a comer com os olhos. É a arte das tristes performances, como quem joga um balde de tinta para o ar e depois esparrama de qualquer jeito, como qualquer louco faria num hospício. Capitalismo é a arte que a empregada do museu pensa “varro ou não varro”, por parecer lixo. É a arte da música sem mensagem, por um cantor sem afinação, os passinhos isolados sem uma dança completa. Capitalismo é a arte dos romances sem tramas, as poesias sem poesia, e as bibliografias das conquistas forçadas por lutas forjadas, a jornada de um herói de araque, que não passava de um riquinho de merda. São os espetáculos de teatro super intimistas, tão caros quanto confusos, que apresentam suas confusões como propostas e transformam a nossa incompreensão como carimbo da ignorância. A arte da moda que não veste ninguém, com roupas impossíveis de se usar na vida cotidiana.

O capitalismo é a política partidária de ideias diversas na luta por recursos para fim escusos, dando ouvido a mil lobistas, em contraste com um povo que precisa de qualquer partido que lá esteja para a resolução das mesmas coisas, coisas obvias e sem mistério algum, que não exige um discurso, como ter uma simples bosta devidamente encanada.

O capitalismo é tanta coisa que se arrasta para cima, jogando o intelecto para baixo. É a ciência da saúde abafada pelos conglomerados farmacêuticos.

Capitalismo promove sonhos que destroem vidas, cria a filosofia meritocrática ao mesmo tempo que desenvolve a depressão humana pela desumanização através do fracasso, é essa corrida entre os pares de seu tempo, o medo do atraso e do vazio, ante aos outros que conseguiram algo.

Capitalismo é meu amigo comprando meu livro para saber o que ando escrevendo, sem nunca falar comigo sobre qualquer coisa que não seja aquilo que temos em comum. Porque acredita que me felicitará mais a compra do que um diálogo.

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Rogério Tadeu Ferreira natural de Recreio – MG, poeta, com formação em artes cênicas e sociologia, tem 5 livros publicados: O Porte, Sensível Homem Que Sou, Dormindo em Queda Livre, Arrebentando Barbantes e A Boca do Mundo. Instagram: @rogerio_tadeuf.

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