Notibras

O sono dos Justos

Enquanto familiares de cidadãos cariocas ainda aguardavam o Instituto Médico Legal, numa praça, ela desligou o canal da TV onde passava a chacina do Rio de Janeiro.

Pensou nos governos que se elegeram com discurso a favor do armamento civil.

Conferiu: o marido já adormecera. Por falta de interlocutor, passou a entrevistar a “Amiga Imaginária” que ainda tinha a mesma face infantil.

Como cidadã brasileira, quem você foi durante o período histórico de 1985 a 2025?

Como assistiu à luta pela memória e justiça feita pelas mulheres das famílias dos mortos pela ditadura?

Onde é seu lugar de fala, ao considerar o contexto atual e a importância de refletir sobre o passado para entender o presente?

Para você, as perguntas ressoam não apenas como uma questão existencial, mas também como um chamado à reflexão sobre nossa identidade coletiva e posição na sociedade?

Como professora de Literatura, você considera que inserir tal tema num conto ou poema pode influenciar a forma como os leitores interpretam a história e se engajam com as questões sociais?

Encerrou a entrevista ao considerar que não tinha mais idade para varar noite em claro, e se preparou pra dormir.

Já na cama, veio aquela imersão num texto escrito a seis mãos e publicado pelo Café Literário Notibras, em 11/03/2025.

Trata-se de uma narrativa fragmentada que combina elementos de ficção científica, surrealismo e crítica social.

O texto começa com o protagonista acordando em um planeta desconhecido, possivelmente Marte, com uma máscara de oxigênio. Ele tenta se levantar, mas suas pernas não respondem. Essa cena simboliza a sensação de desorientação que podemos experimentar em momentos de crise ou mudança.

O protagonista começa a caminhar pelo planeta desolado, procurando por algo, mas não sabe o quê. Busca por significado e propósito na vida?

A areia que cobre o chão do planeta desconhecido representa a vastidão e a indiferença do universo.

Nesse cenário árido, a memória do protagonista sobre uma lasanha feita com uma massa diferente da habitual remete à nostalgia por um passado mais simples e familiar.

A reflexão sobre a mudança e a abdução representa a sensação de estar perdido e desconectado do mundo ao redor.

A cena final passa-se numa praça, ou seja, num espaço coletivo com reminiscências de prática democrática. Na praça, o protagonista, visto como um vagabundo ou um delinquente, constata uma sociedade que julga e marginaliza aqueles que não se encaixam nos padrões estabelecidos.

O texto apresenta elementos surreais e fantásticos, como a caverna vazia no planeta marciano e o botequim que conserta discos voadores. Esses elementos podem representar a imaginação e a criatividade como formas de escapar da realidade e encontrar significado.

A pergunta das senhoras na praça sobre a desilusão que o deixou “largado no banco de praça” pode ser uma reflexão sobre a perda de identidade e propósito que podemos experimentar em momentos de crise.

Feita a reflexão sobre a condição humana, a busca por significado e a relação entre a realidade e a fantasia, a leitora entrou em estado hipnagógico: aquela região entre vigília e sonho…

Adormeceu embalada por três vozes que se revezavam na leitura do texto “Consertamos discos voadores”.

E até a manhã seguinte, dormiu o sono a que sua “Amiga Imaginária” tinha direito …

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Edna Domenica é educadora, cronista e cidadã brasileira. Autora de Aquecendo a produção na sala de aula (Nativa, 2001), A volta do Contador de Histórias (Nova Letra, 2011); Cora, coração (Nova Letra, 2011); No Ano do dragão (Postmix, 2012), De que são feitas as histórias (Postmix, 2014) , Relógio de Memórias (Postmix, 2017), As Marias de San Gennaro (Insular, 2019), O Setênio (Tão Livros, 2024). Sobre ser escritora declarou em entrevista a Cecília Baumann: “escrever é uma empreitada existencial desafiadora […], uma tarefa árdua, um afeto prazeroso, um ato de cidadania”.
Referência: https://www.notibras.com/site/dalem-africa-pra-ca-num-mundo-que-gira-em-torno-de-palavras/

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