Nataniel Quaresma acordou sobressaltado, suando frio e com tremores em todo o corpo. Uma latejante e quase insuportável dor de cabeça turvava a sua vista e o impedia de enxergar um palmo a sua volta. Ele tivera um pesadelo apavorante, mesmo para os seus padrões de frieza e de indiferença em relação à opinião e à atitude de outros seres humanos em relação a ele.
Tinha sonhado que estava sozinho e imobilizado, caído nas areias de um deserto e, em volta dele, crianças, mulheres e anciões desfigurados e famintos o cercavam, avançando em seguida na sua direção com garfos e facas nas mãos. No sonho, todos gritavam “assassino”, “genocida”, “monstro” e outras palavras ininteligíveis, ao mesmo tempo em que ele tentava balbuciar “sou apenas um patriota que fez a vontade de Deus”.
Recuperando-se do estado catatônico em que se encontrava, Nataniel conseguiu olhar em volta e, em vez da sua cama e do seu quarto, viu que estava em um estranho lugar repleto de símbolos religiosos, ao mesmo tempo que sentiu um forte cheiro de incenso no ar. Repentinamente, dois homens entraram no estranho aposento e, dirigindo-se a ele, falaram pausadamente:
-Já está pronto, Nataniel?
-Estávamos esperando por você!
Os rostos dos interlocutores não eram completamente estranhos a Nataniel. Confuso e ainda mais aflito do que acordara, ele respondeu, atropelando as palavras:
-Pronto para quê? Onde estou? Quem são vocês?
Com um olhar recriminador, os dois homens permaneceram em silêncio por algum tempo, até que ambos falaram em sequência:
-Tudo a seu tempo, Nataniel. Venha conosco e logo terá as suas respostas!
-Comecemos pela última pergunta. Você certamente já ouviu falar de nós. Eu sou Dante e esse é o meu amigo Virgílio, somos poetas.
Esfregando os olhos, Nataniel disse, em um impulso:
-Devo estar sonhando de novo…droga, por que não consigo acordar e fugir desses sonhos malucos?
O homem que se apresentou como Dante replicou:
-Não, você não está sonhando, Nataniel, apenas fez uma passagem.
-Levante e nos acompanhe, por favor! Ali na cômoda tem uma roupa adequada para você usar por aqui, disse Virgílio.
Nataniel tentou gritar, chamar a sua esposa, a criada, os seguranças… mas o grito ficou preso na sua garganta. Sem opção, obedeceu a delicada mas firme ordem de Virgílio. Depois de recomposto e vestido com as roupas que encontrou, rosnou:
-Olha, não sei o que está acontecendo, mas essa brincadeira não vai ficar barata para vocês, viu?
-Venha conosco e logo irá compreender tudo, disse Virgílio.
Com sorrisos tristes, Dante e Virgílio abriram uma porta e, seguidos por Nataniel, começaram a descer lentamente uma longa escadaria.
Mais calmo e, por mais absurda e surreal que achasse a situação, Nataniel deu-se conta finalmente que precisava conversar com os seus anfitriões para entender o que estava acontecendo. Enquanto descia a quilométrica escadaria seguindo os seus guias, falou:
-Olha, vocês me desculpem se fui indelicado, mas espero que entendam como estou me sentindo por favor, digam-me sem brincadeira, vocês são mesmo Virgílio e Dante, os famosos poetas?
-Isso mesmo, Nataniel, confirmou Dante.
-Meu Deus, você disse que eu fiz uma passagem, então se não estou sonhando Nataniel interrompeu-se, como que não querendo completar as conclusões advindas da sua reflexão.
-Sim, Nataniel, você fez a passagem que todos têm que fazer um dia, embora nem todos venham para esse lugar ou sejam recebidos por nós dois. Na verdade, nós somos apenas arautos, “Ele” e seu Conselho Divino Supremo é que decidem essas coisas.
Com a mente em rebuliço e o coração acelerado, Nataniel permaneceu em silêncio, tentando absorver a amarga situação e, relutantemente, projetar o que poderia lhe aguardar naquele lugar sombrio e ainda misterioso que não imaginava existir. Lembrava de ter lido uma sinopse da “Divina Comédia”, mas não recordava maiores especificidades da famosa obra de Dante Alighieri.
Após o trio finalmente ter completado a longa descida, Virgílio falou:
– Chegamos ao Primeiro Círculo da Estação, Nataniel. Vamos começar a lhe apresentar o lugar antes de revelar o que lhe está reservado. Dante, por favor, faça as honras.
-Certo, Virgílio! Bem, aqui é o limbo. Como dá para ver, é um espaço tranquilo, destinado aos que não fizeram nada de muito condenável, mas que, por azar, não tiveram a chance de conhecer o filho de Deus na sua passagem pelo mundo terreno. Por exemplo, lá estão Leônidas, Sócrates, Platão, Aristóteles, Arquimedes, Júlio César, além de outros famosos.
-Antes de Dante continuar, uma explicação, observou Virgílio:
-Tradicionalmente, essa estação da dimensão pós-vida terrena tem nove círculos. Ocorre que, recentemente, houve uma orientação do Conselho Divino Supremo no sentido de que os círculos de números um (limbo), dois (luxúria), três (gula), quatro (avareza e prodigalidade), seis (heresia) e nove (traição) não mais recebam moradores. Os que lá já estão, aguardam remoção e, a depender de nova avaliação dos seus casos, serão transferidos para outros círculos ou mesmo para uma das outras duas estações do pós-vida: Purgatório ou Paraíso.
-Tal alteração deve-se à mudança de conceitos que envolvem respeito à diversidade, ecumenismo, necessidade de avaliação dos contextos das situações ocorridas e direito à identidade e autodeterminação dos indivíduos. Então, ficam mantidos nessa estação apenas os círculos de números cinco, sete e oito, complementou Dante.
-Perfeito, Dante! Vamos então direto para o círculo número cinco para não perdermos tempo.
-Quinto Círculo: ira, raiva e fúria descontrolada, ódio sistemático pelos semelhantes sem causa justificada, informou Dante.
-Aqui, atolados em um pântano lamacento, há uma luta sem trégua entre os irados e furiosos, de modo que eles causem profundas dores e atrozes sofrimentos uns aos outros, complementou Virgílio. O que achas disso, Nataniel?
Aflito, Nataniel respondeu do jeito que sempre fazia quando era questionado sobre raiva desmedida contra todos os seus vizinhos de diferentes etnias e religiões:
-Meus sentimentos são apenas uma manifestação de cuidado e de proteção do meu povo contra assassinos e terroristas de todo tipo, asseverou.
-Há controvérsias, mas de que qualquer modo, não ficarás aqui, falou Dante.
-Ótimo, suspirou aliviado, Nataniel.
-Andiamo, orientou, Virgílio.
-Sétimo Círculo, violência contra o próximo. Aqui, assassinos sistemáticos, sádicos hipócritas e tiranos impiedosos são imersos em um rio de sangue fervente e, assim, permanecem em eterna agonia, esclareceu Dante.
Em tom grave, Virgílio questionou:
-O que tens a dizer sobre isso, Nataniel?
……………………..
O segundo (e último capítulo) será publicado no domingo, 29
