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Onde os deuses costumam caminhar entre os homens

Há mitologias que encantam pela forma como explicam o mundo; e há mitologias que fundam mundos inteiros. A mitologia africana pertence à segunda categoria. Não é um conjunto estático de lendas: é um universo vivo, pulsante, em que cada povo molda seus mitos como molda o barro, imprimindo neles história, cosmologia, ética e movimento.

Entre as savanas douradas, as florestas ancestrais e os desertos que parecem respirar ao vento, surgiram há milhares de anos narrativas que ainda hoje ecoam no candomblé, na umbanda, nos cultos afro-caribenhos, no cristianismo africano, nas músicas, nas danças e até nas formas de resistência social.

Quando o Universo desperta
Ao contrário das mitologias que pregam um único começo, a África descortina vários nascimentos. Para os iorubás, o mundo nasceu de Olorum, que enviou Oxalá para moldar a Terra num vasto silêncio primordial. Já entre os povos bantos, o universo brota das águas iniciais, onde Nzambi, a grande força criadora, separou a luz da escuridão, dando forma ao que antes era só fluidez e escuridão.

Nenhum desses mitos busca substituir o outro: todos coexistem como rios que correm paralelos, alimentando a mesma bacia cultural.

Reino dos Orixás, Voduns e Nkisis
A África não possui “um” panteão: possui muitos, com deuses que se correspondem, se cruzam e se reinventam. Entre eles:

Os Orixás (O povo iorubá – Nigéria, Benim)

São forças da natureza e arquétipos humanos.

Oxalá, o criador, símbolo de paz.

Xangô, trovão e justiça.

Iemanjá, mãe das águas salgadas.

Ogum, senhor do ferro e da guerra.

Oxum, rio, beleza, fertilidade.

Voduns (Povo fon – Benim, Togo)

Mais ligados à ancestralidade profunda e aos elementos invisíveis:

Dan, a Serpente Cósmica que sustenta o mundo.

Mawu-Lisa, par que representa sol e lua, criação e equilíbrio.

Nkisis (Povos bantos – Angola, Congo)

Entidades ligadas à terra, ao fogo, ao ciclo da vida:

Nzazi, o poder dos céus.

Kavungo, representante da cura e da floresta.

Kidiadi, guardião das encruzilhadas existenciais.

São mitologias com função pedagógica, ensinando valores de respeito, coragem, generosidade e domínio de si.

Ancestralidade
Na África, os ancestrais não são memórias: são presenças. A mitologia não separa o mundo dos vivos e dos mortos — ela os costura. Acredita-se que os antepassados acompanham as famílias, protegem as aldeias, orientam decisões e preservam a ligação com o sagrado.

É um elo que atravessou o Atlântico com os povos escravizados e que ainda hoje estrutura terreiros, rodas de capoeira, sambas de raiz e a ideia de comunidade.

Heróis, animais e metáforas vivas
A mitologia africana é fértil em personagens que representam astúcia, coragem e ambiguidade. Um dos mais famosos é Anansi, a aranha trickster da África Ocidental, que engana deuses, manipula o destino e simboliza a inteligência como arma dos fracos contra os fortes.

Há também histórias de leões que falam, árvores que carregam espíritos, rios que sentem saudades e montanhas que guardam segredos. Cada elemento é tratado com profunda dignidade: tudo na África possui alma e propósito.

Mitologia como resistência
Ao longo de séculos, a mitologia africana foi demonizada, proibida, queimada em navios negreiros, perseguida por colonizadores e deformada por preconceitos. Mas ela sobreviveu — e não apenas sobreviveu: renasceu.

Renasceu nas religiões afro-brasileiras, nos quilombos, nos terreiros da Bahia, nas festas de santo, nos maracatus, nos batuques do cerrado e nas músicas que exaltam a força dos orixás.

A mitologia africana é, portanto, um continente espiritual que nunca se rende.

Por que essas narrativas fascinam?
Porque explicam o mundo a partir de uma lógica que não separa razão e emoção, sagrado e profano, natureza e humanidade. Na mitologia africana, tudo vibra, respira, ensina e transforma.

E talvez seja essa a sua maior beleza: o divino não está no céu — está aqui, dentro de cada gesto humano e em cada pulsação da Terra.

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