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Os deuses do aço

Em seu aniversário, Juarez ganhou uma machadinha e um canivete de um amigo que colecionava armas brancas. Ele jamais possuíra uma faca ou algo parecido, mas se apaixonou pelos dois presentes. O pequeno machado, de empunhadura anatômica, lembrava uma arma anglo-saxã de arremesso ou um tomahawk dos nativos norte-americanos. O canivete, por sua vez, não era do modelo suíço, com pequenas lâminas para mil e uma utilidades; era uma faca de lâmina retrátil, de uns 20 centímetros de extensão quando aberta. Sua ponta aguçada proclamava que não se tratava de um objeto de corte, e sim de algo destinado a perfurar, romper tecidos, matar talvez.

Com um sorriso, Juarez digitou uma mensagem para o amigo:

“Cara, obrigado pelos presentes. Usei na minha filha e na minha neta, estavam muito chatas. Sujou um pouco, mas os gatos estão me ajudando a limpar o sangue. Um grande abraço.”

Horas mais tarde, ele se perguntou por que fizera aquela brincadeira de gosto mais que duvidoso. Seu relacionamento com as duas mulheres da casa era tranquilo – quer dizer, dentro dos padrões da família disfuncional brasileira. Alternava palavras de carinho e outras de desprezo, apoio nos momentos difíceis e revoltantes demonstrações de egoísmo. “Se isso fosse motivo para matar, não tinha ninguém vivo no Brasil”, pensou com um sorriso. “Foi só uma piadinha que deu chabu”. E foi dormir.

Acordou de madrugada, com uma voz ressoando em sua mente:

– Faça a oferenda! Os deuses do aço têm sede!

A partir desse momento, a voz não cessou de ser ouvida. O tom variava – cobrança enérgica, súplica, raiva por sua inação –, as palavras não. Imaginou que estava ficando louco, mas depois admitiu a hipótese de os objetos terem vida própria. E uma personalidade maligna.

Sete dias depois, sem ter dormido um único segundo durante todo esse tempo, ele resolveu obedecer à exigência dos deuses. Imaginou como o crime seria apresentado nos jornais – feminicídio, distúrbio psíquico agravado pela pandemia… Recordou-se do romance “O estrangeiro”, do francês Albert Camus, cujo protagonista mata um homem num delírio induzido pelo calor e pela forte luminosidade. “No meu caso não são a luz e o calor, é a cobrança que não para, são as palavras daqueles filhos da puta”, pensou com um suspiro de amargura.

Na madrugada seguinte, Juarez esfaqueou até a morte a filha e a neta. No mesmo momento as vozes silenciaram. Ficou duas horas em silêncio, sentado no sofá da sala, saboreando a quietude. Depois, decidiu ligar para a polícia, mas não para se entregar.

– Quando eles entrarem no apartamento, lanço a machadinha – falou consigo mesmo. – Com sorte, acabo com mais um. E avanço com a faca. Eles com certeza vão me matar, mas levo comigo mais oferendas. Os deuses do aço estão sempre com sede!

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