Beto (Polaco), Carloto (Seco), Júlio (Julinho) e eu, Getúlio (Geto), éramos colegas de escola e amigos raiz. Todos estávamos na mesma faixa de idade, entre dez e doze anos e tínhamos muitas afinidades, interesses comuns e, como grupo, nos completávamos maravilhosamente.
Polaco era o mais velho do grupo, atleta modelo, rosto de galã e, mesmo sendo temido pelos meninos e amado pelas meninas, era admirado por todos e todas. Era um verdadeiro Aquiles de coração puro e conduta exemplar.
Seu ponto fraco: profundas dificuldades cognitivas, o que o fez ser reprovado de ano mais de uma vez.
Seco era o mais ladino e esperto da turma, inteligente, observador e, muitas vezes, dissimulado como um verdadeiro camaleão. Ponto fraco: não passava inteira confiança para quem o conhecia bem.
Julinho encarnava o riquinho burguês, estudioso, aristocrático, refinado, um autêntico nerd modelo do século XX. Era o mais sensível e afetuoso dos quatro. Ponto fraco: a sua afetividade à flor da pele, por vezes, fazia com que não fosse devidamente respeitado.
Eu, Geto, absorvia uma parte das qualidades e também alguns defeitos dos outros três. Era um nerd não tão convicto e, ao mesmo tempo, um bom atleta. Ponto fraco: tinha o status social mais baixo da turma, visto ser filho da cozinheira da escola e só ter conseguido estudar no seleto estabelecimento em função de uma bolsa de estudos.
Estudávamos no melhor colégio particular do município de Santo Ângelo/RS, uma típica escola semirreligiosa de elite da década de 70 e tínhamos todos muito orgulho disso.
Se, individualmente, éramos figuras de destaque na comunidade escolar, juntos, éramos admirados e invejados como o icônico “quarteto-fantástico” da Marvel. Pena que sem uma “mulher invisível” para dar um toque de delicadeza e charme feminino para o “supergrupo”, dado que o colégio na época era franqueado apenas para meninos.
Em volta do colégio Santo Ângelo orbitavam outras fraternidades. Uma delas relaciona-se diretamente com o nosso dia a dia. Tratava-se da temida família Trevisan que tinha a sua base de atividades na própria residência, essa localizada em uma rua que tangenciava a parte de trás do colégio, divisa com um bairro popular da cidade.
Os Trevisan somavam quatro irmãos que não estudavam no colégio Santo Ângelo e, sim, em uma escola municipal próxima dali: Marcos, o mais velho, Sérgio, Hudson e o mais jovem, Cláudio.
Apesar de não serem alunos do colégio, eles circulavam na área e estabeleciam relações com alguns colegas da nossa grande comunidade escolar. Não obstante serem apenas quatro, eles lideravam duas dezenas de agregados que residiam no mesmo bairro e que, igualmente, sentiam-se excluídos por não poderem estudar no liceu da cidade.
Andavam sempre em bando e, para desespero do diretor e dos nossos professores, algumas vezes faziam incursões no espaço interno do colégio, consumindo frutos diretamente das árvores como gafanhotos, atirando pedras ao léu, entoando cânticos de guerra e intimidando quem cruzasse o seu caminho.
Cláudio, o Trevisan mais jovem, estava na nossa faixa de idade. Era o irmão mais ativo e temido do bando, sendo que, em virtude de um parentesco distante, mantinha relações com Seco, integrante do nosso círculo íntimo, o que era motivo de recriminação contra esse por parte dos outros integrantes do quarteto.
Apesar do mito que cercava a imagem dos Trevisan, nunca soubemos de nenhuma ação mais condenável ou de algum delito que eles tivessem cometido, além, é claro, das incursões belicosas que eventualmente faziam pelos amplos espaços do nosso colégio.
Nós os temíamos, é certo, mas, ao mesmo tempo, éramos fascinados pelo mistério que cercava aquela irmandade tão unida, barulhenta e, aparentemente, tão agressiva.
Quis o destino que os nossos caminhos se cruzassem mais de perto de uma maneira um tanto surreal. Certa vez, em um sábado à tarde, o quarteto estava em uma atividade de lazer no espaço do colégio, como costumávamos fazer. Por uma ideia inspirada de algum dos integrantes do grupo, estávamos construindo uma cabana natural com papelão, galhos e folhas de árvores que haviam sido recentemente podadas.
Trabalhamos duro durante horas e o resultado estava se consumando de forma a encher os olhos de quem visse a obra. A cabana estava se tornando um cenário digno de filmes dos pioneiros do velho oeste, histórias que adorávamos assistir juntos nos cinemas da cidade. Mas a nossa alegria não durou muito.
Repentinamente, ouvimos gritos vindos da depressão que havia próximo de onde estávamos e que marcava os limites do terreno do colégio com a rua de trás do prédio.
Polaco, o mais ágil do grupo, correu para o muro a fim de ver do que se tratava e, imediatamente, deu meia volta em disparada, gritando:
– São os Trevisan, estão em uns trinta! Vamos dar o fora daqui!
Ato contínuo, corremos com todas as nossas forças para o interior das dependências do colégio que ficavam a cem metros de onde estávamos.
Felizmente, fomos rápidos o bastante para ficarmos fora da vista do ensandecido bando.
Todavia, desolados e com os olhos pregados em uma janela do segundo andar do prédio, assistimos à completa destruição da nossa obra de arte.
Enlouquecidos e munidos com pedaços de paus, os integrantes do bando invasor não demoraram muito tempo para deitar por terra tudo o que arduamente havíamos edificado e, depois de concluída a destruição, terminaram o feito colocando fogo nos destroços da cabana.
Mas tudo piorou quando Cláudio, o líder da invasão, encontrou uma blusa que Julinho havia esquecido no local. Ele apanhou a peça e imediatamente, com olhos que deveriam ser de lince, mirou a janela onde estávamos, apontou em nossa direção e, a plenos pulmões, gritou:
-Eles estão na janela! Atacar!
Com a gana de autênticos bárbaros em início de batalha, o pequeno exército se pôs a correr em nosso encalço emitindo urros assustadores.
Nosso sangue, simplesmente, gelou! Julinho e Polaco, mudos, mudaram de cor. Seco, quase chorando, conseguiu balbuciar:
-E agora? O que faremos?
Em um ato-reflexo, falei:
-Vamos para a cozinha!
Na cozinha, estavam a minha mãe e outras duas senhoras, todas cozinheiras do colégio. Eu sabia que ali era o único espaço que nem os Trevisan ousariam invadir. O grupo aceitou a minha sugestão de pronto e, quase voando, batemos os nossos recordes de velocidade. Em menos de um minuto, estávamos na segurança do acolhedor e cheiroso ambiente onde as deliciosas refeições da comunidade escolar eram elaboradas por mãos talentosas e experientes.
Expliquei a nossa aflitiva situação para minha mãe, dona Áurea, e para as suas colegas de arte culinária. Elas não pareceram levar a situação muito a sério.
-Bah, esses meninos…parece que não tem o que fazer, disse dona áurea.
Todavia, o importante é que deixaram que lá permanecêssemos por mais de duas horas.
Por cima dos muros do colégio que ficavam próximos à cozinha, podíamos observar alguns membros do bando fazendo gestos ameaçadores com as mãos, entretanto, os irmãos Trevisan não eram burros e sabiam que naquele dia a caçada estava encerrada.
Após adquirirmos a convicção de que todos os potenciais agressores haviam se dispersado, Polaco e Seco decidiram voltar para as suas casas. Julinho, ainda receoso, quis ficar mais um tempo na segurança do nosso abrigo inexpugnável, apesar da casa da sua família estar localizada a uma quadra do colégio. Após mais algum tempo, vendo que o medo ainda estava estampado nos olhos do amigo, falei:
-Eu te acompanho até a tua casa!
Aliviado, Julinho aceitou a escolta e, rapidamente, chegamos ao novo porto seguro sem problemas. Quando eu fiz menção de voltar, ele disse, resolutamente:
-Não vou deixar você voltar sozinho agora, ainda tem o perigo de alguns deles estarem por aí. Fica um tempo aqui e vamos assistir televisão. Ela chegou aqui em casa essa semana.
Televisão, nunca tinha visto essa magia tão comentada e decantada pelos colegas mais abastados. Simpaticamente acolhido pelos pais do amigo, esses, donos da maior rede de açougues da cidade, tive então o meu primeiro contato com o mítico aparelho que se tornaria presença contumaz na vida da maioria dos seres humanos até o tempo presente.
Dali para a frente Julinho, e eu aprofundamos ainda mais os nossos laços de amizade e nos tornamos para lá de íntimos, verdadeiros irmãos espirituais até a vida nos separar.
O quarteto fantástico permaneceu ativo e unido até completarmos a oitava série, ano em que nos dispersamos por outras escolas, pois o colégio Santo Ângelo só oferecia então o ensino fundamental. Mas o mais curioso aconteceu quanto à relação do quarteto com os irmãos Trevisan, os feios e malvados que nos atacaram de forma tão irracional e selvagem naquela ocasião. No dia seguinte ao evento que narrei, inesperada e surpreendentemente, Cláudio Trevisan em pessoa, parecendo envergonhado e arrependido do ataque despropositado e da destruição da nossa cabana, veio falar conosco ao término do turno das nossas aulas.
Cabisbaixo e meio sem jeito, ele pediu desculpas por tudo o que ele e sua turma haviam feito e ainda nos convidou para jogarmos futebol com eles no campo que ficava ao lado da casa da família Trevisan.
Naturalmente, a princípio, ficamos todos desconfiados, mas analisando bem a situação, tomei a frente e disse para Cláudio que aceitávamos com prazer o convite e que estaríamos na atividade para a qual ele tinha nos convidado.
Depois que o satisfeito líder dos Trevisan se afastou, os amigos me questionaram se ele teria sido mesmo sincero e também se aceitarmos o convite não seria uma atitude pouco prudente da nossa parte. Mesmo Seco, parente dos Trevisan, estava vacilante. Convicto, falei:
-Vocês não observaram a verdade nos olhos dele? Deve ser a primeira vez que ele pediu desculpas na vida!
A verdade é que o absurdo daquele ataque tão bárbaro e imotivado deve ter virado alguma chave na cabeça dos Trevisan. Creio que eles entenderam que o quarteto não era culpado pela exclusão deles da comunidade escolar. E também, como confessaram depois, ficaram maravilhados com a arte e a beleza da cabana que construímos e que eles, por rancor irrefletido, haviam transformado em cinzas. Assim, compreenderam que teriam muito a aprender com o quarteto…e, é claro, a recíproca também era muito verdadeira.
Por incrível que pareça, nos tornamos membros honorários da família Trevisan e, muito à vontade, participávamos frequentemente das suas reuniões festivas e atividades coletivas, situação que, inicialmente incompreendida, foi aos poucos assimilada pela nossa comunidade escolar.
Quanto às incursões dos Trevisan pelo colégio, para grande alívio do diretor e dos professores, a atividade, antes afrontosa e agressiva, se metamorfoseou em caminhadas pacíficas, ordeiras e fraternais que viraram motivo de interação e confraternização entre os periféricos e a comunidade escolar do seleto colégio Santo Ângelo.
Assim, durante a minha infância, tive a ventura de ser testemunha de um caso muito raro nos dias atuais, ou seja, a aplicação sincera e fraternal do famoso adágio “paz na terra aos indivíduos de boa vontade”.
