Na juventude, eles se amaram loucamente. Décadas depois, reencontraram-se magicamente. Maduros, decidiram se amar sabiamente. Mas amar é bem difícil, e amar bem é mais difícil ainda, infelizmente.
Para Eduardo e Ruth, tudo (re)começou em agosto de 2019, com uma garimpada no Facebook. Verificaram que moravam em cidades diferentes e que estavam descasados – ambos com filhos e netos. Aos poucos ele retomou o contato com o grande amor de sua mocidade, e em pouco tempo as juras de bem querer se multiplicaram em e-mails e postagens. Era um reencontro que os deixava sem fôlego, meio ressabiados do que os deuses estavam aprontando. Seja como for, tiverem a lucidez de perceber que não poderiam tratar a Coisa – o termo que usavam para esse período encantado de suas vidas – como uma retomada de algo existente. Era preciso encará-la como um namoro recente, algo que exige cuidados para sobreviver, e uma contínua descoberta do parceiro. E mais, como observou Drummond, em “Campo de flores”, quando os deuses concedem um amor crepuscular, maduro, “há que amar diferente. De uma grave paciência ladrilhar minhas mãos. (…)”. Eles sabiam de tudo isso, e foram em frente.
O (re)encontro veio em setembro, na cidadezinha onde haviam vivido sua paixão dos vinte anos e onde nenhum dos dois morava fazia tempos. Houve a descoberta dos corpos desgastados, mas ainda capazes de dar e receber prazer. Houve longas conversas, que foram preenchendo décadas de falta de informações de um sobre o outro; houve uma total sinceridade, pois o tempo dos charminhos e dos falsos pudores havia muito ficara para trás. O resultado foi que os dois retornaram a suas respectivas cidades apaixonados, agradecidos aos deuses por esse amor maduro e conscientes do que fazer para preservá-lo.
Ruth e Eduardo marcaram um novo encontro para o início do ano seguinte. A Coisa continuou a crescer, agora com telefonemas diários cada vez mais longos. E aí começaram os problemas. Eduardo confiava em seu taco para manejar palavras em e-mails e postagens, mas conversas pelo telefone eram outra coisa. Por vezes ele se mostrava brusco, e magoava Ruth, que sempre se ressentira com a violência das palavras. Em “Consolo na praia”, Drummond, o sábio, observou: “Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca cicatrizam. Mas, e o humour?” Só que o humour escasseia depois dos 60 anos; houve discussões, afastamentos e retomadas. Em resumo, em janeiro Eduardo chegou a Porto Alegre, onde Ruth morava, consciente de que havia fissuras na Coisa e que era urgente preenchê-las.
Só que não deu. Ruth lhe ofereceu mil mostras de carinho, levou-o aos parques, cafés e teatros da cidade, proporcionou-lhe noites inesquecíveis. Mas, ao mesmo tempo, mostrou-se raivosa diante da incompetência doméstica do parceiro, incapaz de preparar um café. Também se indignou com o número excessivo de cigarros que Eduardo fumava e passou a caminhar diante dele, para não ser atingida pela fumaça.
A magia foi recuperada quando se exilaram de Porto dos Casais – dos casais em crise – e fugiram para o Uruguai. Mas a lua de mel na Cisplatina tinha data de validade, foi preciso regressar a Porto Alegre, de onde Eduardo seguiu para São Paulo. Ele estava consciente de que Ruth e ele jamais conseguiriam morar juntos e que, ainda mais grave, as fissuras na Coisa haviam aumentado.
Os telefonemas intermunicipais recomeçaram, o enlevo regressou com força, mas não total, longe disso. O pior é que a “grave paciência” de que falava Drummond diminuía a olhos vistos, tanto a de Ruth quanto a de Eduardo. Mãos sem ladrilhos, ásperas, foram ferindo a pele do parceiro. Como observou Eduardo numa msg: “Querida, vai levar tempo até que a gente recupere a fluência do querer”. Sem dúvida, o amor subsistia, mas manter a Coisa viva estava a cada dia mais difícil. Até que, depois de decretar sucessivas greves de silêncio, cortando telefonemas, Ruth terminou a relação por meio de um áudio.
Ao pensar no que havia acontecido, Eduardo percebeu que havia reproduzido um velho padrão, de escoicear para que a parceira terminasse o relacionamento. Ele sem dúvida poderia ter sido mais atencioso com a mulher amada – atencioso nos dois sentidos, de ser gentil e de prestar atenção. E recordou um episódio sobre o qual havia lido.
Eram dois tigres adultos, macho e fêmea, colocados em jaulas adjacentes num zoológico. Os dois ficavam horas seguidas se lambendo e com o dorso encostado nas grades, buscando um contato pleno. Quando a tigresa entrou no cio, os técnicos a conduziram até a jaula do macho – que a abateu no mesmo instante com uma mordida na nuca.
Perplexos, os técnicos do zoológico declaram tratar-se de um dos raros episódios em que o instinto territorial havia sobrepujado o instinto sexual. Talvez o odor da tigresa no cio ainda fosse fraco, o fato é que o macho sentiu-se invadido, ameaçado, e contra-atacou.
“Algo semelhante aconteceu comigo e com Ruth”, pensou Eduardo. Ela havia construído laboriosa e penosamente seu estilo de vida, morando sozinha, nas proximidades da filha e das netas. Mais ainda, às custas de muito sangue, suor e lágrimas, havia deixado de beber e de fumar. Tudo isso fazia parte do território dela, que ele invadira com seus maus hábitos enraizados. Quanto a esses hábitos, beber não era problema, ele havia parado faz tempo. Aprender a fazer café e a fritar um ovo era perfeitamente possível. Mas largar o cigarro…ele fumava mais de dois maços por dia!
Então, era esse o quadro de Eduardo e Ruth no ano de graça de 2020, segunda quinzena de março: a Coisa aos pedaços, a relação terminada – exceto por um pequeno fio. Ele tinha reservas em um hotel da capital gaúcha e passagens compradas para encontrá-la em abril. Ali, se ela quisesse, poderia dar-lhe um pé na bunda, ao vivo e em cores, mas talvez ele a fizesse perceber que sua improvável história de amor merecia uma última chance. Só que então veio o coronavírus, a viagem foi adiada, a passagem e a reserva de hotel remarcadas para o fim do ano. Resta a Eduardo repetir diariamente, como um mantra: “Que os deuses me protejam quando, mais uma vez, eu penetrar na jaula de Ruth!”.
