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Pablo, que nem Neruda era, nasceu mesmo foi Ricardo Eliezer Neftalí Basoalto

Pela primeira vez, desde que assumi esta página dominical em Notibras para falar do Lado B de poetas, cronistas, romancistas, contistas e outros fingidores, trago aos leitores um perfil internacional.

Com o compromisso de apresentar o autor, fugindo do meramente anedótico e do pitoresco, falaremos de Pablo Neruda, esse fingidor maior, que até fingia ser outra pessoa diferente da que foi, pois nasceu Ricardo Eliezer Neftalí Basoalto, em Parral, Chile, em 12 de julho de 1904, mas, um dia, virou Pablo Neruda. Ficou um pouco obscura a origem de seu pseudônimo literário, mas há indícios de que o prenome foi escolhido por ser comum em seu país, e o sobrenome homenageava um remoto escritor da Tchecoslováquia. O poeta deixava assim, de propósito.

O fato é que Ricardo Basoalto ficou para trás, nas terras chuvosas e distantes do Chile, na posição do filho do ferroviário José del Cármen e enteado da boa “mamadre” Trindade Marverde – quanta poesia no nome de família de sua madrasta. Don José conduzia um trem de lastro, que é aquele responsável por distribuir, ao longo do leito da ferrovia, o elemento granular de pedra que sustenta os dormentes sobre os quais se assentam os trilhos. Trabalho fatigante e perigoso, geralmente trazia à companhia do pai do poeta homens indesejáveis, ex-presidiários, autores de crimes muito graves e que, no entanto, povoaram a infância e a imaginação do poeta como uma lembrança amena.

Aos oito anos, fez seu primeiro poema que, lido a seus pais na hora do jantar, levantou dúvidas se fora mesmo ele que havia escrito. A vida pobre dos homens do interior do Chile, as chuvas intermináveis, o céu escuro e o mar gelado, as casas simples de seu bairro, foram sempre a fonte inicial de inspiração e deslumbramento.

Cresceu e estudou letras e literatura na Universidade do Chile, em Santiago.

Nessa época, o país buscava reestruturar sua diplomacia, conectar-se com novos mercados, e renovava o corpo diplomático. Por um amigo, foi levado a certo ministro do governo em busca de um cargo. Nomeado diplomata, sem qualquer expressão social, foi enviado para terras remotas na Ásia, onde servia seu país com dignidade e pobreza, enquanto ia compondo poemas.

Depois, ocupou o posto na Espanha, justamente na época da guerra civil que levou Franco ao poder, algo que marcou profundamente a vida e a lira do poeta.

Interrompeu a carreira para ingressar na política de seu país, onde elegeu-se senador pelo partido comunista do Chile. O mandato terminou com a proibição e encerramento do partido, quando, para não ser preso, Neruda escondeu-se alguns meses em Valparaíso, antiga cidade portuária, até conseguir cruzar, a cavalo e a pé, a fronteira gelada com a Argentina, de onde, partindo para a Europa, passou a denunciar os desmandos do presidente Gabriel Gonzáles Videla (1898-1980).

Teve três mulheres. A primeira, Maria Antonieta Hagenaar (1900-1965), de origem holandesa, foi mãe de sua única filhinha, Malva Marina (1934-1943), morta ainda criança. Depois, a importante artista argentina Délia Del Carril (1884-1989), a quem conheceu na época espanhola. Por fim, seu grande amor, Matilde Urrutia (1912-1985), profissional pioneira na fisioterapia pediátrica no Chile, com quem ficou até a morte.

Neruda era um homem de coragem e ação. Mesmo perseguido político, não renunciou a estar ao lado dos homens pobres e explorados de seu país, de todos os outros países, aos quais sempre cantou, lutando por seu protagonismo e liberdade.
Invejava os poetas brasileiros, pois esses tinham ao Brasil, de onde muito gostava e visitou várias vezes.

Numa dessas visitas, em casa de Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), degustava um caríssimo vinho francês, sob o olhar de seu colega brasileiro, burguês, industrial e de direita, que, de pé, descascava uma tangerina. Foi então que Schimdt perguntou a Neruda:

— No mundo de amanhã, será dado aos homens beber um vinho como esse?

Ao que o chileno respondeu:

— Si, ciertamente.

Da última vez que veio ao Brasil, em 1968, entrevistado por nossa Clarice Lispector (1920-1977), revelou que admirava a poesia brasileira na pessoa de Vinicius de Moraes (1913-1980), Geir Campos (1924-1999) e outros, mas que tinha especial predileção pelo poema “O Defunto”, do médico e memorialista mineiro Pedro Nava (1903-1984). Neruda o sabia de cor, e fazia questão de recitá-lo por todo lado que passava.

Nesta ocasião, viajou a Ouro Preto, Belo Horizonte e Congonhas com Vinicius. Uma única vez vi a linda foto do poeta, tomada ao lado da estátua do profeta Daniel atribuída a Aleijadinho, no adro da igreja do Bom Jesus, em Congonhas. Nunca consegui recuperar esta foto para meu acervo. Nesta viagem, Neruda refestelou-se com a culinária e a boa cerveja gelada brasileira, sempre acompanhado por seu bom amigo Vinicius, com o qual, além de copos, também compartilhava a profissão de diplomata.

Em visita ao sítio do arquiteto e paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994), no Rio de Janeiro, Neruda brincou com o fato de que, toda vez que encontrava Vinicius, o via com uma mulher mais nova do que a anterior. O chileno, ao lado de Matilde, viu uma menina de uns 12 anos passar, brincando, perto de Vinicius, e disse para o brasileiro:

— Mira! Es tu próxima esposa.

Quando pôde, finalmente, viver sossegado no Chile, Neruda passou a morar entre Santiago e Isla Negra, onde mantinha uma casa de frente para o mar, numa praia selvagem e intocada. Viajava frequentemente para ela, a bordo de um modelo simples da Citroën, conduzido pela esposa. Ali, viveu momentos de muita inspiração e poesia. Cada objeto, cada canto era decorado com propósito e atenção por ele e Matilde, que compravam objetos e antiguidades em feiras e brechós.

Candidato a presidente do Chile, tinha boas chances de ganhar, mas acabou por abrir mão da candidatura para apoiar Salvador Allende (1908-1973).

A casa de Isla Negra ficava com o portão aberto, até o dia em que, cercada de jornalistas que vinham perturbar sua paz quando souberam que ele havia recebido a indicação para o prêmio Nobel de literatura, Neruda passou-lhe um cadeado, como num ato cerimonial e solene, depois de ver fotógrafos enfiarem a cabeça pela janela da cozinha enquanto tomava seu café da manhã.

Neste tempo, gozava de prestígio político e boa posição diplomática. Chegou a ser embaixador do Chile em Paris, cargo ao qual foi conduzido em 1971, mas em 1972, doente, retornou para seu país, durante as convulsões sociais cujo desfecho já conhecemos: o Governo Allende terminou com um golpe militar e o presidente morreu no Palácio da Moeda.

Dias depois do golpe, em 23 de setembro de 1973, Neruda morria numa clínica no centro de Santiago. Oficialmente, sucumbiu ao câncer de próstata. Anos mais tarde, pesquisas confirmaram que foi envenenado.

É assim que os regimes de exceção tratam seus inimigos, cuja arma geralmente é uma cabeça que pensa.

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Cassiano Condé, 81, gaúcho, deixou de teclar reportagens nas redações por onde passou. Agora finca os pés nas areias da Praia do Cassino, em Rio Grande, onde extrai pérolas que se transformam em crônicas.

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