Não foi num domingo, logo depois da missa, ou haveria mais gente indo pra casa, testemunhas do acontecido. Foi antes, em alguma hora profana. E talvez nem tenha sido num domingo, há seis chances em sete contra essa possibilidade.
O que se sabe com certeza é que foi em Niterói, no bairro de Santa Rosa, na rua Professor Miguel Couto, no quarteirão em que se encontra a igrejinha de Santana, quase na esquina com a Estácio. Isso, na época, final dos anos 1950. Hoje, a avenida Estácio de Sá chama-se avenida Roberto Silveira, e a Miguel Couto, cheia de restaurantes e bares da moda, foi incorporada ao elegante bairro litorâneo de Icaraí. Questão de status.
A arena estava montada. Na calçada da igrejinha, seguindo para a Estácio, caminhavam duas mulheres, uma senhora e uma jovem, provavelmente sua neta. Perto da calçada oposta – não, no meio da rua –, bufando que nem um touro Miúra, vinha Pedrinho, pedalando velozmente sua Monark.
Não era uma magrela de corrida, cheia de marchas intrincadas, e sim uma bicicleta de freio contrapedal. E Pedrinho não era um atleta do ciclismo ou de qualquer outro esporte, e sim um menino gordinho, de dez anos. Não ia rápido demais, corria como o fazem os garotos de sua idade, desde que tenham a sorte de possuir uma bicicleta. Não prestava atenção a coisa alguma, moleques de 10 anos em geral são desatentos e entregues a devaneios. Talvez pensasse na seleção de 1958, campeã do mundo, talvez sonhasse com Garrincha, joia de seu Botafogo, não dá pra saber.
O fato é que Pedrinho/Miúra, sem que soubesse como nem por quê, aproximou-se cada vez mais da calçada oposta, perdeu o controle da Monark, não conseguiu pisar no freio, subiu pela calçada e atingiu em cheio a senhora, lançando-a no chão. O sangue manchou a calçada. Apavorado, à beira das lágrimas, Pedrinho pronunciou a frase mais estúpida de sua vida.
– Não foi minha culpa!
Claro que tinha sido culpa dele, de quem mais seria? A senhora não havia se lançado pela arena como uma intrépida toureira, para enfrentar o touro sobre duas rodas. Culpa dele, sim. Não por um ato deliberado, não era um psicopata, mas por uma demonstração de imprudência, imperícia, por uma brincadeira de mau gosto dos deuses, o escambau. A jovem olhou-o com desprezo e rosnou:
– Some daqui, menino, ou te cubro de porrada!
Pedrinho levantou do chão a bicicleta semidestroçada e, afastando-se da Estácio, desceu a Miguel Couto sem olhar para trás.
E então veio a culpa, avassaladora. “A velha não vai andar nunca mais, vai pra cadeira de rodas”, pensava o tempo todo. Comprou jornais em busca de alguma notícia do atropelamento, nada. Passou a conviver com a culpa, a arrastá-la consigo. Aos 10 anos, tornou-se um garoto mais quieto, sua vida ficou menos luminosa. A família gostou da mudança de comportamento, sem perceber a carga colossal que era levada pelo menino.
O tempo passou. Pedrinho, agora Pedro, estava com 22 anos e cursava Direito. A formatura seria no ano seguinte. Começou a namorar Rosaura, uma lourinha de 19 anos. Virgem, mas com os hormônios em ebulição, doidinha para se entregar nos braços de seu amado. Antes que o inevitável acontecesse, porém, ela o levou para conhecer sua família, talvez anunciassem ali mesmo o noivado.
Era uma família de mulheres, avó, mãe, irmã e sua amada.
– Pedro, essa é minha mãe, dona Roseli.
– Muito prazer, senhora.
– E essa é minha irmã, Rosa.
O rapaz viu uma mulher que lhe pareceu estranhamente familiar. Sentiu um frio na barriga, ânsia de vômito, não sabia por quê.
– E essa é minha avó, dona Rosalina.
Pedro deparou-se com uma senhora risonha, que caminhava com alguma dificuldade, apoiada em uma bengala. Ele a reconheceu de imediato: era a vítima da tourada na Miguel Couto. A custo, balbuciou “Muito prazer”, enquanto pensava, “Pelo menos anda, escapou da cadeira de rodas”.
O resto da visita foi um pesadelo. Ele só falava quando lhe perguntavam diretamente alguma coisa – e então respondia qualquer absurdo. Os familiares de Rosaura se entreolhavam, achando esquisito aquele namorado da filha caçula, que pena, um rapaz com um belo futuro. Uns 20 minutos depois, Pedro alegou uma indisposição súbita e foi embora. Rosaura o acompanhou até o portão, ele se despediu com um beijo frio na testa.
Dias depois, terminou com a moça. Sem explicações. Ela chorou, perguntou se havia outra, ele negava e repetia.
– Não é você, sou eu.
Só que havia outra, sim. Uma construção disforme e pegajosa de seu psiquismo, que se tornara sua companheira inseparável e continuaria a sê-lo pelos séculos dos séculos. Que culpas silenciadas não descem do lombo.
