Em 1938, enquanto o alemão Walter Benjamin dava os últimos retoques na obra Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, uma de suas criações, o flâneur benjaminiano, perambulava pelas ruas de Paris em busca de um eflúvio, um leve aroma, um resquício da aura de seu ídolo e inspirador, o flâneur baudelairiano. (A rigor, não eram personagens literários, não havia um flâneur chamado Jean nos textos de Baudelaire, nem um outro chamado Karl nos ensaios de Benjamin, mas ambos, inesquecíveis, ganhavam vida e saltavam das páginas magníficas dos dois autores.)
Para o bate-pernas alemão, tiete do parisiense, este representava a quintessência da modernidade e do espírito urbano. Claro, não encontrou nada, Baudelaire havia morrido muito tempo antes, em 1867. Decepcionado, o benjaminiano ia flanar de volta para casa, quando os deuses tiveram piedade dele e o levaram pelo tempo e pelo espaço, colocando-o num banco do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, no ano de graça de 2017.
Num primeiro momento, o andarilho ficou assustado, sem saber onde estava. Aos poucos, porém, recuperou a calma característica dos dândis europeus, levantou-se e olhou em volta. E viu, não muito distante, um homem vestido com trajes elegantes do século XIX. Aproximou-se do janota e indagou polidamente:
– Excusez-moi, parlez-vous français? [Desculpe, o senhor fala francês?]
– É minha língua natal – respondeu o estranho, no idioma de Baudelaire.
– É curioso, algo no senhor me parece familiar. Por acaso…
– Sou o flâneur baudelairiano – cortou o elegante. E prosseguiu com a explicação. – Estava perambulando pelas deliciosas vielas de Paris, as que sobreviveram às reformas urbanísticas de minha época, quando, não sei como, vim parar nesta cidade desconhecida. Achei-a pavorosa, todo esse espaço…
“Ele não gosta das grandes avenidas e bulevares parisienses abertos na segunda metade do século XIX, no reinado de Napoleão III” – percebeu o benjaminiano. “Sente falta das ruas estreitas, terreno ideal para um flâneur que se embriaga do contato com a multidão”. Em seguida declarou ser também um andarilho urbano, admirador do pioneiro esboçado por Baudelaire, com quem no atual momento tinha a honra de conversar (fez uma reverência, polidamente retribuída), e que perambulava pela capital francesa na segunda metade dos anos 1930. Superado o espanto inicial por terem vindo de épocas diferentes, trazidos sabe-se lá por quem, como, ou por quê, decidiram caminhar juntos, sem destino, pelas ruas da cidade desconhecida, absorvendo sua modernidade. Afinal, era o mínimo que Baudelaire e Benjamin esperariam de suas respectivas criaturas.
Nesse momento, materializou-se diante deles um homem que empunhava um revólver.
– É um assalto – rosnou em francês. – Entreguem tudo!
– Não atire – respondeu o benjaminiano. – Quem é o senhor?
– Ah, os bonitinhos falam a minha língua? Melhor, gosto de conversar. Sou um personagem genetiano, uma criação do imortal Jean Genet, viado, ladrão e escritor, nessa ordem de importância – declarou com orgulho. – Estava com um macho num hotel barato em Paris quando, não sei como, vim parar aqui. Por sorte trouxe minha arma, vou fazer muitos assaltos no Rio de Janeiro.
– Rio de Janeiro? A capital do Brasil?
– As duas belezinhas nem sabem onde estão! E nem que a cidade deixou de ser capital do Brasil há muito tempo! Esse é o Aterro do Flamengo, sei disso porque meu criador, Jean Genet, esteve no Brasil em 1970.
– Mais de 30 anos depois de meu tempo… – observou o benjaminiano.
– Mais de um século depois de meu tempo – acrescentou o baudelairiano.
Quem ficou espantado dessa vez foi o genetiano. Indagou quem eram, o que tinha acontecido, reconheceu que eram uma espécie de avatares literários e no caso, meros joguetes dos deuses, mas continuou a apontar a arma para os dois andarilhos. Afinal, à semelhança do autor da peça O balcão, era um assaltante dedicado e homossexual assumido; quanto aos escritos, deixava-os por conta de Jean Genet.
– Compreendam, assaltar alguém ou dar pra alguém é um exercício de liberdade. Sou um predador, livre como um leopardo das savanas da África, escolho minhas vítimas e meus machos…
Nesse momento olhou meio diferente, de um jeito que se pretendia sedutor, para os dois e observou:
– Aliás, um de vocês pode deixar de ser vítima e se tornar um amigo querido. Qual de vocês vai fazer comigo? Aqui mesmo. É um espaço aberto, alguém pode ver, mas o risco aumenta o prazer…
Os flâneurs entreolharam-se, meio em jeito, e continuaram em silêncio.
– Vamos, decidam-se, não tenho o dia inteiro! – rosnou o genetiano, gesticulando com o revólver na direção dos dois.
Do outro lado da avenida, Antônio, nascido e criado no Rio de Janeiro, viu o reluzir da arma à luz do Sol, percebeu que era um assalto e decidiu intervir. Pegou um cano de metal que estava no chão e correu para o Aterro do Flamengo.
Horas depois, numa delegacia carioca, o delegado conversava com o policial envolvido no caso.
– Não esquenta, não deve sobrar pra você.
– Sim, doutor – e perguntou. – O que houve com os gringos?
– Quanto às duas vítimas do suposto assalto, mandei dar uma surra leve, só umas porradas, e liberei. Pra aprenderem a não usar roupas esquisitas e andar sem documentos pelas ruas do Rio. Quanto ao terceiro gringo, o viadinho, mandei aplicar um corretivo mais forte, pela tentativa de assalto. Depois ia soltar, mas ele implorou pra ficar na cela, queria conhecer seus irmãos criminosos. – Parou um segundo, sorriu e continuou. – Então as pancadas foram só pra amaciar a carne. A surra vai ser esta noite. De pau!
Ainda rindo, falou ao policial:
– Me conta de novo, bem detalhado, o que você fez.
– Pois é, doutor, eu ia atravessar a avenida e passear no Aterro do Flamengo quando vi um cara correr na direção de três homens, segurando um cano de ferro. Os três eram gringos, turistas, percebi de cara. Achei que ele ia assaltar os turistas. Gritei, “Pare, polícia”, mas o elemento continuou correndo. Então mandei chumbo. Pretendia só ferir, mas dei azar, o projétil atingiu um ponto vital e ele caiu morto. Trouxe os gringos pra esta delegacia, pra prestar esclarecimentos, o resto o senhor sabe.
O delegado ficou uns minutos em silêncio, pensando, depois falou.
– É não vai dar nada pra você. A culpa foi dele mesmo. O indivíduo empunhava uma arma improvisada, estava disposto a machucar alguém. Talvez fosse cúmplice do assaltante, o cafetão dele, vai saber. Afinal, por que um preto favelado, de short e sem camisa, iria se envolver num lance entre europeus?
