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Pina, o Bárbaro Cigano que hoje brilha no Céu

Na terça, 12, Fernando Seabra — o Pina — teria completado mais um aniversário. Ele se dizia às vezes fulano, noutras sicrano, mas no fundo era um bárbaro cigano, capaz de aparecer numa roda de amigos com um sorriso largo e logo desaparecer na curva da esquina com a mesma naturalidade.

Morreu cedo demais, em junho de 1994, deixando um rastro de histórias, gargalhadas e silêncios. Pina foi — e ainda é —, como costuma lembrar Nanda, “uma luz na Terra que hoje brilha no Céu”.

E foi à luz dessa lembrança que a família se reuniu em um restaurante de Águas Claras, em Brasília. A mesa longa parecia um mosaico de afetos. Lora, a cunhada que ainda sabe contar histórias dele com o mesmo brilho nos olhos; Malukete, a sobrinha-neta, que embora não o tenha conhecido, jura que herdou “a risada debochada do tio Pina”; Júnior e Alê, que mantêm vivas as anedotas contadas no Beirute e no Bom Demais e dos churrascos improvisados; e Gabriela, a sobrinha favorita, que sempre tem uma foto antiga, amarelada, escondida no celular, pronta para mostrar.

— Lembra daquela vez que ele chegou com a barba por fazer e disse que tinha virado ermitão na Chapada? — perguntou Lora, rindo.

— E que ermitão! — completou Júnior. — Voltou com um colar de contas e um violão, achando que ia viver de música…

— Até descobrir que nem sabia afinar — riu Gabriela.

Faltava Beto. Sobrinho de mesma idade, criado junto e que mamou nas mesmas tetas, como gosta de dizer. O trabalho exaustivo do dia o impediu de ir. Mas, no silêncio de sua varanda na Asa Norte, ao lado da esposa Rô, abriu uma garrafa de vinho e o casal brindou sozinho, ao tio ausente.

— Feliz aniversário, Pina… — murmurou, olhando para o céu de Brasília.

Rô sorriu, cúmplice:

— Já estamos na idade em que um happy hour na varanda vale mais do que qualquer balada.

O brinde de Beto se misturou ao das taças que tilintavam no restaurante, como se, de algum jeito, todos estivessem no mesmo lugar. Talvez estivessem mesmo. Porque quem é bárbaro cigano nunca fica preso a um só canto. E Pina, com certeza, deu um jeito de aparecer em todas as mesas.

O calendário da terça-feira marcou 12 de agosto, data que, para alguns, é apenas mais um dia de inverno no Cerrado. Mas para a família de Fernando, é dia de silêncio e brinde, de saudade e riso contido.

Pina nasceu nesse dia e partiu cedo demais, em junho de 1994, quando ainda carregava nos olhos o brilho de quem tinha pressa de viver. Dizia-se fulano, às vezes sicrano, mas, no fundo, era um bárbaro cigano: chegava de repente, ocupava a sala com histórias e gestos largos, e desaparecia na curva da vida como quem parte para um novo destino.

Para Nanda, ele foi “uma luz na Terra que hoje brilha no Céu”. Uma luz inquieta, que nunca se deixou domesticar.

No restaurante escolhido, essa luz parecia refletir nos rostos reunidos: Lora, a cunhada, guardava um riso antigo, como quem ainda ouve a voz dele chamando da porta; Malukete, que diz sentir no sangue a mesma rebeldia; Júnior e Alê, o primeiro, cunhado de histórias infindas, e o segundo, sobrinho penetra por casar com Gabriela, juram que nenhum churrasco depois dele teve o mesmo sabor; e Bibi, a sobrinha favorita, que carrega no celular uma foto já amarelada, como um talismã.

Entre goles e lembranças, as frases se misturavam ao tilintar dos talheres:

— Pina não passava pela vida. Ele a atravessava, arrastando todo mundo junto.

— E sempre deixava um rastro, mesmo que fosse só de gargalhada.

Lá no alto, talvez o bárbaro cigano tenha escutado. Talvez tenha brindado de volta, rindo de todos nós, porque sabia que não é preciso estar vivo para permanecer presente. Basta ter sido luz.

Pina deve ter respondido como na sua música favorita, “Só nos resta viver”, de Ângela Ro Rô. Ele sabia que a solidão existe, que insiste no coração de quem fica, mas também sabia que a luz de um pode guiar o caminho de outros. Que a dor — essa que entristece e aperta o peito — pode ensinar os fracos de alma a verem o que ele sempre viu, do tipo que a vida, apesar das ausências, é bela.

E se alguém fechou os olhos nessa noite e prestou atenção, por certo ouviu o bárbaro cigano murmurar do alto: “Não chorem por mim. A solidão é só um intervalo entre um abraço e outro. A luz que me guia agora é a mesma que um dia guiou vocês — e ainda guia. A vida é como eu sempre disse: mesmo quando dói, é bela. Então, meus queridos, bebam, riam, errem, amem… porque só nos resta viver.”

E Pina, ontem, brilhou de novo.

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Fernanda Seabra, casada com Jr, mãe de três sobrinhas de Nando, é professora

José Seabra, de passagem por Brasília, é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras

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