-Cartas?
-Duas!
-Três para mim!
-Quero duas!
-Uma!
Como ocorria todos os fins de semana, estavam sentados há dez horas jogando aquele pôquer interminável. Uma densa nuvem de fumaça formatada por cigarros e charutos intermitentes pairava acima das cabeças, cinzeiros, fichas, canecas de cerveja, copos de uísque e pedaços adormecidos de pizzas.
-Passo!
-Eu dobro!
-Pago para ver!
-Seus vinte, mais quarenta!
-Seus quarenta, mais oitenta!
-Pago para ver!
Repentinamente, um garoto entra na sala com um prato na mão.
-O que tem aí, menino?
-A tia Jussara pediu para entregar um pedaço de bolo para o senhor, tio!
-Ôpa, já vi muito bolo de tia com ases dentro!
-Deixa ali na mesa do lado, garoto! Gente, estou cansado e com fome. Vou sair um pouco da mesa para comer o bolo.
-Ninguém sai, ninguém sai! Outro garoto entra na sala.
-Minha mãe quer saber se o senhor vai mandar o dinheiro para a feira.
-E quem é a sua mãe?
-Ué…é a sua mulher!
-Ah, aquela! Diga para ela que estou com uma quadra de ases na mão…e como ninguém vai ser louco de querer ver, logo iremos embora com os bolsos cheios.
-Só se esse baralho tiver seis ases, porque dois estão comigo!
-Diz prá ela que o cachorrão falhou.
-Hora das cartas na mesa, trinca de reis!
-Sequência!
-Full house!
-Sorry, amigos, quadra de damas! Vem para o papai, lindo bolo de fichinhas abençoadas!
-Pessoal, já é de manhã, acho que para mim deu!
-Ninguém sai, ninguém sai!
Duas horas depois, cinco mulheres entram no recinto de ambiente quase irrespirável.
Tateando por causa da fumaceira, elas se aproximam da mesa para identificar e recolher os respectivos companheiros que, quase desmaiados e com os olhos esbugalhados, incrivelmente ainda conseguiam se manter sentados.
Na segunda-feira seguinte, os cinco amigos se encontram na hora do almoço:
-Gente, temos que tomar vergonha na cara!
-Verdade! Dessa vez exageramos, né?
-Assim não vamos durar muito, já não somos crianças.
-Pinguços decadentes de meia-idade é o que somos, você quer dizer.
-Concordo com todos, demos um vexame além da conta…mas o que vocês propõem?
-Eu proponho o Paulão!
-Alvoroçados, todos perguntaram simultaneamente:
-Que Paulão???
Oliveira, o autor da proposta, explicou:
-É o personal do meu irmão. Ele dá treino para uma turma no parque Ibirapuera três dias por semana. Os outros quatro se entreolharam, sentindo ao mesmo tempo um frio na barriga.
-Você quer dizer…pararmos com o nosso pôquer semanal e nos dedicarmos a recuperar nossa boa forma? questionou Siqueira.
-Recuperarmos a nossa saúde adotando bons hábitos, falou Mendonça, apoiando a ideia de Oliveira.
-E esse Paulão, é bom no que faz? Perguntou Vieira.
-É o melhor! Além de ser fisicamente uma rocha e um monumento de saúde, ele também é um filósofo de inspiração estoica que motiva maravilhosamente todos os seus pupilos para entrarem na linha, respondeu Oliveira.
-Então tá, por mim eu topo. A Jussara, minha namorada, já deu um ultimato para eu me emendar, confessou Cerqueira.
-Então fechou! Se todos estão de acordo, vou marcar com o Paulão para começarmos na próxima quarta, finalizou Oliveira.
Na quarta-feira, às sete da manhã, estavam todos no parque vestindo abrigo esportivo para a primeira sessão com o professor Paulão.
Emitindo uma voz de trovão e transmitindo um entusiasmo digno de Catão, o romano, Paulão iniciou a sua fala motivacional:
-Hoje temos mais cinco gladiadores da saúde e da boa forma na nossa equipe. Por favor, apresentem-se, rapazes! Após as apresentações dos cinco ex- jogadores de pôquer, o professor deu início à aula do dia. Enquanto orientava os alunos nos exercícios e movimentações, Paulão perguntava e os pupilos respondiam imediatamente em uníssono, sempre em altos brados:
-Cigarro?
-Mata!
-Cerveja?
-Mata!
-Uísque?
-Mata!
-Carne gorda?
-Mata!
-Pizza?
-Mata!
Passadas três semanas, como era de se esperar, os novos alunos estavam cheios de dores nos músculos e nas articulações. Entretanto, encharcados de orgulho pessoal e imbuídos da mais alta elevação espiritual, já começavam a se sentir integrados ao virtuoso ideário do super professor e inspirador guru.
As noitadas de pôquer e suas emoções, regadas a tudo o que era proibido e pecaminoso, já pareciam lembranças um tanto distantes e dispensáveis. Sem dúvida, Paulão iria redimi-los definitivamente… pela dor, pela abstinência e pela penitência.
Após mais um fim de semana sabático, os cinco amigos chegaram ao parque animados e ansiosos para mais uma dolorida e redentora sessão de purificação. Entretanto, não avistaram Paulão, o que era bem estranho, pois a sua figura se destacava fisicamente a qualquer distância em meio a qualquer grupo. O que poderia ter acontecido, preocuparam-se.
Chegando mais perto, viram Janice, a fiel assistente de Paulão, chorando copiosamente e sendo consolada por alunos-discípulos do mestre.
-Gente, o que houve? perguntou Oliveira, aflito.
-O mestre…o Paulão…tentou falar um dos alunos, sem conseguir concluir a frase.
-O professor Paulão morreu, ataque cardíaco, conseguiu balbuciar a inconsolável Janice. Perplexos, os cinco amigos se entreolharam, parecendo estarem sendo abduzidos por um alien impiedoso. Com a inacreditável notícia alugando um duplex nas suas mentes, retiraram-se, conservando um silêncio mais do que obsequioso, até que Oliveira pesarosamente filosofou:
-Somos todos finitos!
-Pôquer na sexta? arriscou, Siqueira.
-Para falar a verdade, eu estou com saudade disso, confessou Mendonça.
-Concordo, mas sem exageros, obtemperou Vieira.
-Hum…nossas mulheres vão chiar! Elas estão tão contentes com a nossa “reabilitação”!
-Podemos convidá-las para jogar canastra em uma sala ao lado, propôs Cerqueira.
-Fechado, chancelou Oliveira.
Na sexta-feira à noite, os cinco compenetrados jogadores tentavam se concentrar nas suas cartas. Não obstante, deveras preocupados, escutavam risos irônicos, comentários não muito católicos e até xingamentos nada republicanos vindos da sala ao lado:
-Bati!
-Juram que ela bateu? Hahaha…chupem que é de uva, otárias!
-Tá muito fácil! Ganhamos mais essa, parceira!
-Júlia, sua anta acéfala! Quem é que bate quando a parceira está com o morto na mão?
-Alto lá, Beatriz! Anta acéfala é a mãe!
-Olha o nível, senhoras! Sem botar a mãe no meio!
-Não estou aqui para ouvir isso, Jussara, vou sair do jogo!
-Ninguém sai, ninguém sai!
Ainda distribuindo as cartas, Oliveira, o filósofo da ala masculina, elaborou:
-Felicidade? Esqueçam! Vamos curtir os momentos felizes possíveis!
